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À noite, todos os gatos são pardos

⁣⁣

Por George dos Santos Pacheco
29/03/23 - 10:07

“A lucidez é um luxo que nem todos se podem permitir.” (José Saramago)

Naquele dia, o carro precisou ficar no mecânico para consertar o batente do amortecedor. Que suspensão aguenta com tantos buracos nas ruas? Nem suspensão, sequer alma viva. Saí do trabalho, pseudoconformado, praguejando entre os dentes e peguei o ônibus na Duque de Caxias, já de noitinha. Entrei, paguei em dinheiro, agradeci ao motorista e passei na roleta. O veículo já lotado, conduzia algumas pessoas em pé, mas surpreendentemente havia um único lugar disponível, ao lado de uma senhora de sessenta e poucos anos, à janela. Aproximei, esperei que ela facilitasse o caminho, encolhendo as pernas, e sentei-me .

– La nuit, tous les chats sont gris. – disse a mulher, inclinando levemente a cabeça para o meu lado. Segurava um livro fechado sobre o colo, mantendo as mãos espalmadas sobre ele.

– À noite, todos os gatos são pardos... – comentei baixinho, em resposta à sua proposição.

– Você foi seguido? – perguntou ela, o rosto firmemente direcionado para a frente.

– Como é? – redargui, virando surpreso para ela.

– Não olhe para mim. Você foi seguido? – censurou-me, ao que tomei igualmente sua postura. Ora, cacetas.

– Seguido? Do que a senhora está falando? – questionei impaciente, no momento em que o ônibus parava novamente para o embarque de mais passageiros.

– Excelente... mantenha o disfarce. Não faça movimentos bruscos. Eles são todos inimigos. – disse ela, quando o veículo arrancou outra vez. O som do ar condicionado e as conversas paralelas abafavam nossa voz.

– Inimigos de quem? – perguntei, ainda mais confuso. O que essa mulher está falando aí?

– Da Coroa... – explicou a senhora, e foi então que me dei conta de que ela era louca de pedra. Louquinha, louquinha. Puta que o pariu, era só o que me faltava a essa altura do campeonato.

– Senhora, eu realmente não sei do que... – tartamudeei, mas ela me interrompeu bruscamente, num pito sussurrado e nervoso.

– Cale a boca, pelo amor de Deus! Não vê que estamos em perigo? Apenas ouça: a sua missão é entregar o pacote intacto ao chefe. – determinou ela, passando o livro para as minhas mãos. Putzgrila. Está cheio de maluco andando por aí, terráqueo.

– Ora, e que chefe? – perguntei, de maneira automática, para logo depois me arrepender.

– O Grão-mestre, chefe da Ordem dos Cavaleiros. – explicou ela, com seriedade. Embora não pudesse encará-la, imaginei que tivesse as feições sisudas e enigmáticas, a fim de manter aquela aura de mistério que nos envolvia. Percebi que não conseguiria nada retrucando e decidi entrar no jogo.

– Companheira, sinto lhe dizer que não sou o seu contato. Vim à frente apenas para que fique tranquila, ele pediu que eu a avisasse de que ele já está chegando... – afirmei num tom igualmente soturno, entrando no personagem. Tentei esticar o livro de volta, mas ela se levantou de súbito e puxou a sineta.

– Ótimo. Então, você pode entregar a ele. E lembre-se: não confie em ninguém. Vejo você do outro lado. – disse ela, num murmúrio, finalmente me encarando. O semblante mudou repentinamente quando o ônibus parou, como se alheia a mim, como se nada tivesse acontecido. Acompanhei-a caminhando para saída, ela desembarcou e seguimos viagem.

“E agora, o que faço com essa porra?”, pensei, enquanto folheava brevemente um exemplar surrado de O Alquimista. Estava todo marcado à carmim, com anotações, grifos, números, frases rasuradas ou destacadas. “Ninguém deixa de sofrer as consequências de cada coisa que se passa debaixo do sol”, estava circulada, assim como muitas outras.

Ameacei deixar o livro sobre o assento, mas tive a impressão de que os passageiros que estavam de pé me vigiavam, com olhares furtivos, por cima dos ombros, de esguelha. Puta que pariu, mas que porra é essa?

Misterioso leitor, eu já conversei com um sem número de malucos por aí, mas dessa vez isso foi longe demais. Meu ponto de parada estava quase chegando e eu sem saber o que fazer. Confesso que fiquei um tanto impressionado com aquela história, ainda que sem pé nem cabeça. Achei melhor me afastar para o assento anteriormente ocupado por ela, mantendo o livro fechado sobre o meu colo. E então um jovem se aproximou, esperou que eu franqueasse a passagem para ele, e sentou ao meu lado.

– La nuit, tous les chats sont gris. – comentei, inclinando levemente a cabeça para o seu lado. Mas ele não me respondeu.


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