A caravana passa
Lembro de ter chorado aquele dia. Quem não se recorda de ter chorado uma vez ou outra, às vezes escondido, e até mesmo se arrepende de não ter sido capaz de conter o labéu de suas lágrimas? Eu já me arrependi, já chorei, já me escondi.
Não sei que idade eu tinha naquele tempo, acho que era uns dez anos, talvez menos. Mamãe tinha o costume de nos enviar à venda do Seu Lourival para comprarmos pães-bisnaga. Quando eu era garoto, todo comércio de bairro era venda. Hoje em dia, não existe mais Seu Lourival, venda, pães-bisnaga, nem mesmo os papéis cinza que os embalavam. Muita coisa deixou de existir nesse meio tempo.
No dito armazém havia de tudo: embutidos pendurados, bebidas, piadas, cereais, doces, penicos, remédios... isso sem falar daquele sonoro baleiro, que deixava brilhando os olhos de qualquer criança. Onde estão os baleiros, meu Deus? Onde estão?
Pois bem. Baleiros à parte, acontece que para chegar ao saudoso comércio, eu precisava atravessar a rua e seguir por uma calçada, mas... ao meio do caminho, havia um cachorro deitado, como se estivesse de guarda: era Veludo, cão velho e maltratado.
Deus do Céu. Vez em quando um garoto tomava uma carreira dele, e é claro e evidente, eu temia ser o próximo!
Continuei caminhando, mas só de vê-lo à distância, já comecei a titubear...
Ah, meus caros e confidentes terráqueos... bastaram nada mais que dois latidos curtos, para aquele puto me por para correr para dentro de casa. Eu podia sentir as baforadas do animal no meu encalço! Ele ia me morder! Ia sim!
Avancei chorando porta adentro, todo suado e esbaforido, batendo-a logo atrás de mim. Meu pai me abordou na sala assim que entrei.
– O que aconteceu? Está chorando por quê? – perguntou-me, com o semblante preocupado, abaixando à minha altura.
– Foi o Veludo... ele, ele correu atrás de mim!
– Ué? Chorando por causa de um cachorro? Você já é um marmanjo! – exclamou ele, e foi aí que eu chorei ainda mais. Saí batendo os pés pelo corredor e minha mãe também me interpelou.
– O papai me chamou de marmanjo! – respondi magoado, esquecendo momentaneamente do original caso do cachorro.
– E você sabe o que é isso? – perguntou mamãe.
– Hum... não, mas é muito feio! – respondi abrindo o berreiro outra vez.
– Seu pai não estava te xingando, meu filho. Marmanjo é um menino grande, só isso.
Enxuguei as lágrimas com os punhos cerrados, ainda fungando. Não me dei por convencido. Marmanjo era qualquer outra coisa, menos um menino grande. Mas se ela estava falando...
Papai se aproximava novamente com um discreto sorriso e tive a impressão de que eles se entreolharam.
– Sabia que os cães percebem quando a gente tem medo? Eles sentem o cheiro do medo. – explicou, assumindo um tom mais sério para isso.
– Verdade, pai?
– Você não deve se envergonhar por ter medo, filho. De cachorro, de escuro, de trovão, de nada. Todo mundo tem medo de alguma coisa. Mas jamais devemos permitir que ele nos impeça de seguir nosso caminho.
– Como assim, pai? – perguntei ainda choroso. Ele achou graça novamente.
– Finge que tem coragem e vai. O segredo é manter a firmeza e continuar caminhando. Nem olha para o que te assusta. Com o tempo, ele percebe que você não tá nem aí para ele, e não vai incomodar mais. – disse afagando meus cabelos e se levantando. – Você não precisa ter medo do Veludo, ele só estava... defendendo a casa dele. – concluiu.
Fiquei ali vendo ele se afastar. Como podia falar isso tudo e sair assim, como quem comenta uma coisa qualquer? O medo era meu, caramba. Como ele podia saber tanto dele?
No dia seguinte, mamãe mandou-me à venda novamente. Putzgrila. E eu achando que depois desse episódio ela fosse me aliviar. Acharam também? Necas de pitibiribas. Tomei a rua, vacilante. O coração batia acelerado, quase saindo pela boca. Lá estava o Veludo, cão rabugento. Deixei o lábio tremer, eu ia chorar... Ah, não. Não! Não podia deixar isso acontecer. Eu já era um marmanjo, afinal. Respirei fundo e continuei. Manter a firmeza e continuar caminhando. Nem olhar para o que me dá medo. Distrair a cabeça com alguma música. Não, não olha pra ele. Tá, eu olhei um pouquinho. Comprei o pão e nem lembro como. Na volta a mesma estratégia. Não, não vou olhar. Como é aquela música mesmo? “Quando eu vi logo ali, tão peeeeerrtoooo!”
Ora e não é que deu certo, cara pálida? Cheguei todo contente em casa! Ele nem me ameaçou! Aliás, nunca mais me incomodou. E morreu de velho. Simplesmente um dia fui à venda e o coitado não estava mais lá. Muita coisa deixou de existir nesse meio tempo. Só que eu tomei carreira de mais um monte de medo nessa vida – e de vez quando vou tomar. Sempre haverá um cachorro no caminho. O macete, porém, é continuar caminhando, cantarolando qualquer música clichê.
Eu lembro de ter chorado aquele dia e em outros ainda. Mas em todos os demais dias eu sorri.
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