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A hora da navalha

Por George dos Santos Pacheco
15/02/23 - 09:55

“Se a única coisa que de o homem terá certeza é a morte; a única certeza do brasileiro é o carnaval no próximo ano.” (Graciliano Ramos)

Quando eu era garoto, quem cortava o meu cabelo era o “Seu” Tião. Seu Tião era um senhor bem humorado, baixinho, de olhos pequenos, e fala mansa. A barbearia funcionava num anexo da casa, bem no centro do bairro e tinha todo o estereótipo do ramo de negócios na década de 1980: cadeira em madeira e metal, estofado em courvin, um grande espelho manchado (com um adesivo de Nossa Senhora no canto superior direito), um calendário de parede com endereço e telefone de uma padaria, e uma pequena bancada com os instrumentos, que incluíam meia dúzia de tesouras, pentes, espanador, talco, pincel e creme de barbear, tigelinha de alumínio, um bloco numerado de jogo do bicho (onde se limpava o restolho do pé de cabelo) e ela, a sinistra e famigerada navalha.

Prezado terráqueo, perdoe por favor este cronista pela carência de erudição, mas eu tinha um cagaço danado quando chegava a hora de aparar o cabelo na nuca. “Levanta a cabeça um pouco… isso”, dizia Seu Tião e tome tesourada. “Abaixa agora só um pouquinho”, penteia para cá e para lá e mais tesourada. Daí ele analisava o afeite à distância, apertando os olhos por um momento e, depois, pegando a lâmina numa gavetinha, alimentava a navalha e voltava: “Fica quietinho que eu vou fazer o pé de cabelo, tá? Quadrado ou redondo, mãe?”

Ficar quietinho? Eu quase não respirava, cara pálida. “Não se mexe não, que se cortar vai sair as tripas por aí”. Meu Deus, alguém já perdeu as tripas fazendo o pé de cabelo?, pensava o pequeno Pacheco, catatônico e com os olhos arregalados, ouvindo Roberto Carlos no rádio do barbeiro: “Tudo vem, tudo vai, como as ondas do mar. Com você aprendi que o que dá pra sorrir, também dá pra chorar!”

Tratava-se de um brevíssimo momento, considerando todo o processo, mas um brevíssimo momento cujo nome do meio era “tenso". A barbearia de Seu Tião não existe mais, mas as navalhas permanecem. Vão-se os dedos, ficam os anéis. Por isso, convém que dialoguemos mais sobre o essencial e deixemos logo o acessório. Pois bem. Já repararam que em tudo nessa vida, e não apenas na barbearia, tem a tal “hora da navalha”? Como assim, minha senhora? É aquele momento importante e solene que merece uma atenção redobrada e que não há como se esquivar. Nossa vida está permeada de situações como essa. Entre parênteses, a gente passa nove meses num confortável útero para, de repente o corpo da mãe avisar “muita atenção agora, viu?”.

É exatamente da mesma forma nas periódicas provas na escola, nos vestibulares, nos votos de casamento, nas eleições políticas… Não é? Claro que é. Há sempre uma ocasião de aparente tranquilidade que precede um momento de maior dedicação e cuidado, uma devotada atenção. Podemos até negligenciar o fato, é verdade, mas corremos o risco. Liberum arbitrium. Repare bem que até o passar dos dias, dos meses e dos anos está subordinado aos pressupostos gerais da vulgo “teoria da navalha". O Carnaval, a propósito, corresponde a uma singela terça de festa (embora alguns jurem de pés juntos que começa na quinta anterior) com seus momos, pierrôs e colombinas, que culmina no aviso de Seu Tião na quarta-feira de cinzas: “Rapazinho, fica quieto agora...”.

Pois muita atenção neste momento, incrédulo leitor, porque é uma ocasião importante. Não estou aqui condenando o carnaval, os churrascos de domingo, a praia do final de semana, a leitura de um livro ou a maratona daquela série de TV, entenda bem, não se trata disso. Voltemos brevemente à barbearia de Seu Tião: não seria ridículo fazer o pé de cabelo sem o corte propriamente dito, ou cortar o cabelo sem aparar a nuca? Afinal, o que seria do essencial, sem o acessório (ou deste sem o primeiro)? O que seria dos prólogos sem os epílogos? Tudo faz parte do processo, cara pálida, quer queiramos ou não.

Por isso, pulemos Carnaval sim (que mal há?), joguemos confete e serpentinas, pintemos os rostos, fantasiemo-nos, cantemos e dancemos, pois não há dúvidas de que também disso precisamos. Lembremos, contudo, que todo Carnaval (aqui na acepção mais abrangente da palavra) tem seu fim, que todo afeite tem a hora da navalha. E não menos importante que tudo isso, basta respirar fundo e não ter medo, não há porquê. Afinal, ninguém perdeu as tripas por isso, não é mesmo?


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