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A onça

Por George dos Santos Pacheco
03/06/20 - 08:40

Certa feita fomos passar o dia com uns amigos. O casal morava com os três filhos num sítio em um dos rincões de Friburgo. Água farta, hortas, árvores frutíferas, galinheiro... era o Paraíso na Terra. Com meus dois garotos, eram cinco crianças. Pensem na farra que a molecada estava fazendo, correndo pra lá e pra cá, subindo em árvores e toda sorte de brincadeiras que os pequenos não tem oportunidade de fazer hoje em dia.

Em determinado momento, a mais novinha se aproximou de mim com a cara mais faceira do mundo, os cabelos de indiazinha colados na testa pelo suor.

– Ô, tio!

– Oi! – respondi sorridente.

– Sabia que tem uma onça aqui? – afirmou mudando o semblante para dar seriedade ao assunto.

– Uma onça? E você viu? – perguntei para ensejar a continuidade na conversa, mas é claro que eu julgava ser parte de uma fantasia infantil.

– Eu não! – disse com um sorrisinho, dando saltinhos e se afastando. – Mamãe foi quem viu! – concluiu, e voltou a brincar com as outras crianças.

Franzi o cenho e sorri. Lembrei imediatamente de uma crônica do Sabino, “Festa de aniversário”. A história tratava da aniversariante, uma menininha, também com seus seis anos, que afirmava, com decisão, ter engolido uma tampinha de refrigerante. E é claro, que isto causou um alvoroço danado no evento. Se uma tampa faz isso, imaginem uma onça?

No almoço comentei com a mãe o fato, e ela também tornou-se sisuda. Explicou que estava caminhando pelo sítio quando a onça a perseguiu.

– Mas você a viu? – perguntou minha esposa, assustada.

– Ver eu não vi, mas ouvi o barulho dela. Sem contar que os vizinhos por aqui comentaram ter visto o bicho esses dias. – respondeu com gravidade.

Daí fiquei pensando... eu achando que a menina estava fantasiando... ela apenas fundamentou sua informação no depoimento de sua própria mãe! Ora, e teria alguém neste mundão de meu Deus com maior influência sobre a menina? E cá pra nós: a mãe, por ventura, poderia estar fantasiando em seu lugar? Até poderia, baseada nos relatos dos vizinhos e influenciada pelo medo. Mas quem sou eu para rechaçar as duas... eu não vivo ali, não sei o que passaram, e é bem possível que a onça exista mesmo. Quem sou eu pra dizer que não?

Deixemos, porém, de lado o acessório e fixemo-nos no principal. Todos os dias somos bombardeados com um sem número de informações, e é claro e evidente, precisamos selecionar as mais confiáveis. O problema é que, na maioria das vezes, as selecionamos segundo critérios demasiadamente subjetivos, baseados em conceitos deturpados, ideologias equivocadas e falsas premissas. Vejam, o que me faria dar pouca credibilidade à história da menina e de sua mãe? Meus trinta e oito anos? Minha tão grande experiência de vida? Meu repertório de conhecimento? Nada disso poderia (nem deveria) ser motivo para qualquer um sentir-se o paladino da verdade. Aliás, não se trata nem mesmo da verdade, seria mais adequado nomearmos isso de... ponto de vista. Sim, ponto de vista. Fazemos todos parte da mesma história. Mas o olhar da criança é diferente. O olhar de cada um é diferente.

Tudo isso me leva a outro questionamento: e se em seu lugar fosse um senhor do alto de seus sessenta e tantos anos? Tampouco eu deveria dar-lhe menos crédito por sua idade? Evidentemente que não. E se fosse eu a contar o caso da onça para este senhor, ele também me julgaria pueril e fantasioso? É bem possível. Absurdo por absurdo, fazemos isso todos os dias. Relacionamos credibilidade com raça, credo, cor, idade, regionalismo, jeito de falar, jeito de se vestir, postura, relacionamento social. E por aí vai. Na medida, porém, em que respeito a leitura de mundo de uma criança ou de quem quer que seja, fortaleço esses diminutos traços da democracia. Dou-lhes o direito à fala, às suas próprias vozes, às suas opiniões. E não é isso a base da democracia?

A menina, comunicativa e serelepe, não parava nunca. Aproximou-se novamente, tão garrida como antes. Tomara que desta vez não seja uma tampinha de refrigerante.

– Tio, sabia que hoje é meu aniversário? – disse-me toda sorridente, os olhinhos brilhando. – Mas a festa vai ser só depois, tá?

– Claro que sabia! Feliz aniversário! – congratulei, e senti-me feliz por também fazer parte desta história.


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