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Acontece nas melhores famílias

Por George dos Santos Pacheco
22/05/24 - 10:23

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (João Guimarães Rosa)

Nove horas e trinta minutos. Toda primeira sexta-feira do mês era a mesmíssima coisa: chegava ao escritório da firma naquele prédio da Augusto Cardoso, de banho tomado, cabelos molhados e penteados para trás, bolsa a tiracolo. Recebia em cash, dinheiro contado e recontado na frente do patrão, sorriso largo e agradecido. Jamais fora soldado, mas dava disfarçada meia volta e rompia marcha na perna esquerda, despedindo-se num simulacro de formalidade. Era um artista.

Descia as escadas dos treze andares, pacientemente. Tinha um medo terrível e quase patológico de elevador, desde que ficara preso, a primeira vez, ainda nos anos 80. Tinha horror a lugares fechados, desde então. “Deus me livre e guarde!”, murmurava entredentes e benzia-se à menor lembrança.

Cruzou a porta de vidro temperado, pardais e pombos ciscavam a calçada, gorjeando discretamente. Um filhote abanava as asas e inclinava o corpo, em pios mais exaltados, e um maior se aproximava, servindo-lhe diretamente no bico. Passou pelos pássaros quase com indiferença e atravessou a rua, aliviado, numa súbita e breve carreira, mantendo firme a alça da bolsa no ombro arqueado.

– Betinho! E essa força? Meio Quilo, está melhor que nunca, hein? E você, Sabirico, seu sem-vergonha? Dê cá um abraço! – cumprimentou Inácio, num tom jocoso e cordial, crispando o rosto num sorriso simpático.

Nove horas e trinta minutos, nem um minuto a mais ou a menos. Abriu a porta vagarosamente, na esperança de todos estarem dormindo e evitar a refrega. Inocência a dele, a família aguardava ansiosamente por um agrado, um docinho, que fosse. Afinal, era sexta-feira de pagamento.

– O que é que tu manda, Inácio? – perguntou Balboa, uma perna cruzada com a ponta do sapato apoiada no chão, uma das mãos na cintura, o antebraço oposto sobre o balcão, e o pano de prato àquele ombro.

– Ô, Balboa! Só você mesmo... Me dá uma dose da filha-do-engenho e um pastel desse de queijo e presunto, que eu não como carne moída… – pediu Inácio, forçando a voz rouca para competir com o timbre estático de Roberto Carlos: “Você não serve pra mim!”

É claro que ninguém iria acreditar, tinha plena certeza disso. Que alternativa possuía, porém? Os menores vieram abraçar-lhes as pernas, a adolescente fingia abstração, deitada no sofá com um livro erguido à frente do rosto, o caçula choramingava no colo da mãe, em pé ao meio da sala.

– Puta que pariu, Balboa! Esse aqui é de carne moída! – protestou Inácio, franzindo o cenho e dando cuspidelas de carne ao chão do boteco. Virou a cachaça de uma talagada só, limpando os lábios com o dorso da mão, os olhos marejados pelo sabor rascante.

– Come esse aí mesmo, pô. É mais barato que o outro e até sustenta mais. – argumentou o dono do bar, num tom moroso e sonolento, enquanto lavava a módica louça.

“Não fique triste, não se zangue!” Inácio engoliu salgado e choro, e pediu cerveja, prontamente atendida por um já embriagado taberneiro. Quatro ergueram o suado copo de cerveja aos lábios, absorvida com avidez até o último gole. Balboa serviu ao amigo e a si mesmo.

Inácio encarou mulher e filhos, apalermado. “Esse mundo está é cheio de vagabundos...”, falou ou pensou, não sabe ao certo. Nem importa. A família percebeu o mau jeito, a mulher o rechaçou pela hora adiantada. Sem ter melhor o que dizer, anunciou: “Fomos assaltados...”.

Balboa cochilava atrás do balcão, recostado na pia oposta, cabeça pingente e braços cruzados. Para toda bebida servida a um cliente, uma dose lhe convinha. Ninguém se incomodava, era boa sua companhia.

– Balboa, quanto deu isto? – perguntara Inácio, sacando a carteira do bolso de trás.

– Vinte... – resmungou o taberneiro, cabisbaixo e com a voz embargada.

– Vinte? Homem, eu bebi três cervejas, uma dose de cachaça e comi dois pastéis. Isso dá no mínimo trinta contos...

– Se você sabe quanto foi, porque “cê" me pergunta? – respondeu mal humorado e sonolento.

Acontece nas melhores famílias. Não é? Inácio pensou, repensou, fumou, e ponderou, até que lá pelos arrabaldes de Santiago, seus cálculos encontraram solução. Sua vida pregressa depunha contra si, e quem tem fama deita na cama, não é o que dizem? “É claro que ninguém vai acreditar”, pensou resoluto, esticando a cabeça para cima a fim de coçar o gogó, enquanto caminhava para casa.

– Como assim, “fomos assaltados”? – perguntou a mulher, sobressaltada, percebendo facilmente o hálito etílico do marido. Entregou o bebê para a filha mais velha, imediatamente. O molequinho abriu o berreiro.

– Err… eu não sei... devo ter dormido no ônibus… – explicou Inácio, cabisbaixo e entristecido, mesmo confuso, tirando a bolsa do ombro e colocando-a no canto da sala.

– Dormido? Seu cachorro! Você perdeu o dinheiro! Ou gastou com vagabunda! – esbravejou a mulher, balançando o dedo em riste em sua direção. Inácio mantinha postura submissa e lúgubre, as mãos contorcendo-se nervosamente atrás do corpo.

Os pequenos resmungavam assustados com a discussão, enquanto a mais velha acalentava o bebê, seguindo na direção do quarto da casa simples. “Tem bala não, pai?”, perguntou um dos garotos, feito um pequeníssimo pardal a sacudir as asas. Inácio sentiu uma aperto no peito, franziu os lábios e apenas meneou a cabeça negativamente, tomado de súbita vergonha. Não tinha um puto no bolso para dar sequer uma balinha para os filhos.

– Quanto foi? – perguntou a mulher, baixando o tom de voz e cruzando os braços. Na mente, todo o tipo de desconfiança, arrependimento e possíveis soluções. Nos olhos, a raiva contida e desmedida. Inácio, esse filho da puta.

– O pagamento todo… – murmurou, tristemente, o homem, deslizando a mão aberta de cima a baixo do rosto.

– Puta que pariu, seu cretino! Você perdeu o pagamento todo? – perguntou Balboa, num sorriso incrédulo..

– Não perdi! Eu… eu fui assaltado! Deve ter sido aquele ex-marido dela, o Jair... – defendeu-se diligentemente o pobre e inocente Inácio, cuspindo o chão com asco. – Ele tem implicância comigo, vocês sabem… – concluiu e virou a dose de morrão, batendo o copo no balcão com um movimento brusco. Ajeitou a gola da camisa, envergonhado, mirando além da parede um ponto metafísico qualquer, enquanto os outros companheiros de bebida riam à socapa.

Inácio avermelhou-se todo. “Fui roubado! Fui roubado!”, repetia ele, cabisbaixo e langoroso, segurando o copo com a ponta dos dedos, num tom de voz quase comovente. Que diferença fazia isso, agora? O leite já estava derramado. Estalou os lábios, tristemente. As sobrancelhas se uniram com vigor, vincando o prócero e apertando as pálpebras, deixando pouco das conjuntivas vermelhas disponíveis. Ato contínuo, ergueu o lábio inferior, feito uma criança birrenta. “É claro que vão acreditar”. Era um artista.


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