Apenas uma dorzinha de cabeça
“O pulso ainda pulsa.” (Titãs)
Enxaqueca. Pelo menos uma vez por mês. “O que o senhor tem, senhor Pacheco, não é ‘enxaqueca’. A enxaqueca é apenas um dos mais de duzentos tipos de dor de cabeça...”, explanava o doc com eloquência, recostado na cadeira, uma mão sobre o apoio de braço e a outra no queixo. Inclinei a cabeça, pasmado, o cenho franzido, observando-o falar com tamanha naturalidade. Senti-me quase que ofendido. Ora, quem era ele (o médico, né Pacheco?) para tratar assim minha dor de cabeça?
Complementou, com ar erudito, que a enxaqueca se tornou lugar-comum na sociedade, popularizada em diálogos de novelas, o sentido deturpado. Na contemporaneidade, era chique dizer que tinha “enxaqueca” em vez de “dor de cabeça”. Pior que tudo isso: as pessoas passaram a se autodiagnosticar e medicar. O médico sorriu. O que eu tinha na verdade, era apenas uma dorzinha de cabeça, uma “cefaleia tensional”. Como é que é, rapá? Eu estava tão íntimo da dita cuja, que poderia chamá-la por um nome próprio que talvez ela atendesse. Enxaqueca, inclusive.
Ouvindo-o falar ali sobre a maledetta, lembrei da questão das palavras que perdem o sentido, tais como o amor, a amizade, a compaixão e a justiça. Naquele mesmo dia, no caminho para a clínica, flagramos um bêbado empurrando uma bicicleta morro abaixo num zigue-zague quase circense. “Não tem juízo nenhum...”, alguém disse. Não tinha, realmente.
A questão é que “juízo”, em seu sentido primitivo, designava “julgamento”. “Juízo Final", “juízo de valor", lembra -se, cara pálida? Alguém que não tem juízo é alguém que não está sujeito a um julgamento, a ser condenado ou absolvido por seus atos, por não ter (ou haver perdido) sua capacidade de discernimento, temporária ou permanentemente, por qualquer motivo. Uma criança, um bêbado (e mais uma monte de gente por aí) não têm juízo. Eu mesmo estava perdendo o juízo com a minha enxaqueca.
“Você toma muito café? Vai precisar evitar...”, recomendou ele, com indiferença. “Vou ter que cortar o café?” Isso era uma dorzinha de cabeça. Continuou fazendo recomendações, seguindo sobre meus hábitos, daí a conversa estranhamente evoluiu para política, as expectativas sobre o atual governo, a insegurança socioeconômica dos tupiniquins, a alta do preço dos alimentos... um monte de dorzinhas de cabeça. “O preço da gasolina é outra dorzinha de cabeça”, pensei, num muxoxo. Meu Deus, ele não parava de falar. O carro está num estacionamento particular e o cronômetro está contando; com o viaduto engarrafado, não tive tempo de procurar por uma vaga pública (elas existem?). Outra dorzinha de cabeça.
Caramba, bati com a roda num buraco do calçamento quando estava vindo, tomara que não tenha amassado o aro. Por falar nisso, preciso pagar o IPVA. Qual era mesmo o prazo? Não posso esquecer. Putz, tem o cartão também. “Doutor, mais alguma recomendação?”, perguntei sentindo uma fisgada que subia pelo lado direito da nuca e seguia pela cabeça até o olho. Apenas uma dorzinha de cabeça? Corta essa.
Segundo ele, não era nada para me preocupar. Eu provavelmente morreria com aquilo e não daquilo. Evitar café, Tai Chi Chuan, imersão sonora e meditação devem resolver. “Em caso extremo, você pode usar esse remedinho que eu vou te receitar aqui...” Ora, cacetas. Como é que eu vou arrumar tempo pra fazer meditação e Tai Chi Chuan, cara pálida? Lugar-comum, sentido deturpado? Pelo amor de Deus. Naquele momento, vendo o médico divagar tão espontaneamente, eu me dei conta, num muxoxo, que a minha, a sua, a nossa enxaqueca, essa com a qual não devo me preocupar, era na verdade, uma baita de uma dor de cabeça, soma dessa e de todas as outras.
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