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Cada coisa em seu lugar

Por George dos Santos Pacheco
01/11/23 - 09:17

“Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá.” (Evangelho de São João)

Era meados da manhã, quando eu entrei na Augusto Cardoso. Haviam alguns carros parados em fila dupla, o que dificultava o trânsito e tornava a passagem mais lenta. Nessa ocasião, estiquei o pescoço para o lado esquerdo da rua e notei o Bar do Balboa fechado, uma folha de papel presa na porta de ferro. Desviei do carro à frente, tomado de uma ligeira inquietação, e segui procurando um lugar para estacionar. Não havia.

Precisei fazer a volta no quarteirão, pensando no que poderia ter acontecido para o Balboa não ter aberto o bar. Interrompi minhas conjecturas ao encontrar, surpreendentemente, uma vaga na Rua do Bolero. Estacionei de primeira (a vaga era boa), desliguei o carro e tranquei-o, conferindo a seguir a distância para o meio fio. Pus-me a caminho para o compromisso, sacando o celular do bolso, e abrindo a tela com o sobrolho franzido. Algumas mensagens não lidas chamavam a atenção naquele aplicativo esmeralda. “Não pode ser…”, pensei, sentindo um frio na barriga.

Desviando do meu itinerário, fui novamente à Augusto Cardoso, tirar a limpo. Parei em frente ao bar, com as mãos na cintura, sentindo os olhos marejarem. Puta que o pariu, era verdade. No papel preso à porta, o lúgubre recado: “Fechado por motivo de falecimento”. Balboa havia infartado durante a noite. Balancei a cabeça, pesaroso, e voltei para os afazeres a que tinha me sujeitado. O Balboa? Ainda não consigo acreditar. O cara tinha uma saúde de ferro, firme que só ele. No dia anterior estava ali, sorrindo e brincando, servindo cerveja, cachaça e tira-gosto, nem sinal da malquista. Ora, que porra.

“Quando a Indesejada das gentes chegar (não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer (a noite com os seus sortilégios). Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.

Talvez tenha sido assim. Talvez ele tenha sentido medo ou apenas sorrido, em paz, certo da inevitabilidade, da inutilidade em relutar. A esposa disse que foi rápido, ele não sofreu. Teve um rápido mal estar e, desmaiando, não voltou mais.

Caminhando pelas vielas do São João Batista, era difícil imaginar meu velho amigo Balboa preso numa foto em preto e branco em alguma placa de cimento. Senti os olhos marejarem outra vez, o nó na garganta. Foi assim também, quando aproximei-me da cerimônia fúnebre, mais de cinquenta pessoas presentes (talvez fossem quase cem), comprimiam-se entre as urnas, silenciosos, perante as palavras do padre, ofuscado brevemente pelos fulgores de um fragílimo raio de sol que incidia sobre ele.

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...”. X, Sabirico e Meio Quilo estavam lá também, apertei suas mãos após o sinal da cruz. “Lembra de quando ele dormiu em pé atrás do balcão, de tão bêbado?”, murmurou Sabirico ao meu lado, usando camisa de malha, calça jeans e sandálias de borracha. Contivemos o sorriso. “Irmãos, a morte, não interrompe a vida; ela é, uma porta, uma passagem para uma realidade nova; tampouco é sua destruição, mas sim, o encontro com a plenitude da vida que está em Deus, pois Ele, o Senhor, criou-nos para a vida plena e não para a morte”.

Baixei a cabeça, emocionado como os outros, uns de óculos escuros, alguns com as mãos unidas à frente do quadril, ou abraçados, mordendo lábios trêmulos, os olhos brilhantes e injetados. No silêncio após o “amém”, Sua Sabiriqueza surpreendeu num aplauso tomado de timidez, ganhando cada vez mais entusiasmo à medida que os demais o acompanhavam. Alguns pombos num muro próximo se assustaram com o barulho e fizeram uma revoada sobre nós.

Naquele momento, lembrando do jeito engraçado do Balboa contar uma piada, de como ele era bem humorado sem perder a seriedade, limpei uma lágrima que insistia em rolar pelo rosto e pensei que não devia ficar triste. Isso seria quase uma ofensa para meu dileto amigo. Eu devia era agradecer a Deus, por ter me dado a oportunidade de conviver alguns anos com um cara tão bacana. Sorri e uni-me ao bater de palmas, que custaram a extinguirem-se. Balboa também devia estar sorrindo, vivo em algum lugar. Estava vivo. “A morte é a curva da estrada, morrer é apenas não ser visto”. Está vivo.


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