Das coisas esquecidas
"O esquecimento das coisas é minha válvula de escape. Esqueço muito por necessidade." (Clarice Lispector)
— Será que vai chover no Natal, moço? – perguntou a senhora na fila do caixa, após o assunto climático surgir na conversa entre ela e a operadora. "Moço?", pensei, com meus quarenta e três anos. Simpático da parte dela me chamar assim, apesar de a nossa diferença de idade me habilitar a ser chamado até mesmo como "menino". Ora, se chove no Natal? Por que as pessoas vivem tão preocupadas com o tempo em determinados feriados? Ninguém pergunta isso na Proclamação da República, por exemplo.
— Em se tratando de Friburgo, pode até nevar! – respondi, com um sorriso, enquanto colocava minhas compras na esteira. Ambas riram, além do empacotador e o neto da senhora, que mexia nas sacolas em busca de um doce que a avó se recusava a entregar naquele instante. "Ano passado choveu?", pensei, en passant, mas se àquela altura, eu não lembrava se tinha comprado todos os itens que Dona Maria havia pedido, muito menos lembraria se havia chovido no Natal passado.
Aliás, quem se lembra disso? É o tipo de coisa que deve estar no rol das coisas esquecidas, junto com aniversários de casamento, contas a pagar, chaves, carregadores de celular e carteiras (que frequentemente ficam sobre alguma mesa). Tem sujeito que chega em casa com um saco de pães, tendo esquecido o filho na padaria.
Pode isso? Claro que não. Entretanto, a ciência explica quase tudo, e com o esquecimento não seria diferente. "Esquecer coisas é um processo natural da memória humana", li uma vez, não me recordo se em um livro ou em um artigo de jornal; e se nem Jorge Amado costumava discutir, tampouco negar a literatura e o jornalismo, não serei eu a fazê-lo.
Existem variados motivos para se esquecer algo. Se a informação não for consolidada corretamente, ou se novas lembranças substituem ou interferem nas memórias existentes, o esquecimento pode ocorrer. Além disso, o estresse e emoções intensas podem prejudicar a capacidade de se recordar.
Foi nesse instante, terráqueo, enquanto eu pensava em meu itinerário seguinte ao mercado, que bateu o desespero: onde foi que estacionei o carro? Putzgrila! Levantei o olhar para o teto, fixando um ponto imaginário e revisitei as cenas do caminho até o mercado: "Alberto Braune, Duque de Caxias, Giuseppe Mastrangelo, Oliveira Botelho…", puta que pariu, eu não conseguia lembrar! Perdoe o calão do cronista, mas isso foi desesperador. Tudo bem, talvez não fosse tão angustiante quanto... quanto um homem que chega em casa e ouve da esposa "Você não tem nada para me dizer?" e o sujeito não tem a menor ideia do que ela está falando. Isso sim deve ser apavorante.
A senhora falava algo enquanto segurava as alças das sacolas, sorria, mas eu não compreendia nada, pois estava completamente absorto na tarefa de lembrar onde estava o carro – além de me assegurar de que não havia esquecido nenhum item. Ela sorria e movia os lábios em seu rosto engelhado, mas era como um boneco ventríloquo mudo e nada daquilo fazia sentido para mim. "Aham, aham...", respondi eventualmente, num ato mecânico e superficial.
— Em frente ao Senai, pô! – quase gritei, escancarando um sorriso aliviado por ter lembrado de algo que não deveria ter sido esquecido. Naquele meio tempo a senhora franziu o sobrolho e foi-se embora com seu neto, enquanto a operadora do caixa me encarava, intrigada.
— Choveu no Finados? Dizem que, se chover no Dia de Finados, não chove no Natal... – comentou ela, passando os itens pelo leitor, que emitia um bip a cada produto. Ora, essa. Até pouco tempo atrás eu não lembrava nem onde estava o meu carro, lembraria por acaso se choveu ou não no Dia de Finados?
— Olha, eu realmente não faço a menor ideia... – respondi friamente, já um pouco cansado da conversa e incomodado pela sensação de impotência diante da fragilidade da memória.
— Dinheiro ou cartão? – perguntou ela, fechando a conta. Encarei os três dígitos em negrito no monitor da caixa registradora e suspirei; havia me esquecido como as coisas andam caras. Enfim, ao vencedor, as batatas. Batatas?
— Batatas! – exclamei, de súbito.
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