De assalto

“As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor. Aprendemos palavras para melhorar os olhos.” (Rubem Alves)

Imagino que o douto leitor já se pegou arrumando a cama para dormir, tendo a ligeira impressão de que o dia passou num piscar de olhos, como se estivéssemos presos num looping temporal em que a lembrança dos acontecimentos do dia são meras ilusões a preencher a memória e engabelar a consciência. Bem, eu não devo ser o único. Na verdade, espero preocupadamente que não.

Fato é que na contemporaneidade nos habituamos a sermos multitarefas e possivelmente seja esse o cerne do insólito devaneio noturno. São tantas coisas que nos ocupam, empregamo-nos de tantos compromissos com a desculpa esfarrapada de sermos mais produtivos que, parece-nos, ao fim do dia, que tudo ocorreu de assalto, assim, estalando-se os dedos.

De assalto? Sim, minha senhora, “de assalto”. O termo tem a acepção de algo que acontece “de repente" embora já não se use mais com esse sentido. Por isso os roubos súbitos e as festas improvisadas e repentinas são um “assalto”. Olha aí, outra vez o cotidiano transformando (ou deturpando) o sentido das coisas. Tempo, palavras e tantos outros. Que lhe parece, porém, mais importante, o tempo ou as palavras? Sim, porque o dia e o assalto não são os únicos que lamentavelmente perderam o sentido. Quer ver, terráqueo?

Danado. Embora meus filhos acreditem que o singelo adjetivo não seja lá um palavrão, coisa inocente e já cristalizada na cultura popular, o dito cujo é talvez um recurso dos mais perniciosos de nosso arcabouço vocabular. “Danado" vem do latim damnatus, condenado, com o uso primitivo “de condenado ao inferno”. Daí todas as outras derivações de aplicação. Pesado, não acha? Melhor seria falar “fodido" mesmo. Ou “ferrado". Aliás, “ferrado" seria o animal marcado com ferro em brasa, por isso a utilização figurada de alguém que está numa situação prejudicada.

Viu, cara pálida? As coisas vão mudando tão devagarzinho que agregamos à nossa vida, naturalmente, e nem percebemos. No caso das palavras, trata-se, talvez, de um eufemismo estilístico, o sentido delas foi atenuado e incorporado a um vocabulário informal na sociedade. Contudo e, indiscutivelmente, as palavras têm poder. E o uso delas com acepção diversa corrompe o comportamento e a percepção da realidade.

Não terá sido isso o que aconteceu ao nosso dia, quando enfim percebemos a velocidade com que o atravessamos? Eufemizando as palavras, condutas e acontecimentos, tornamo-nos também apáticos e indiferentes.

Coisa de “filho da puta", não é? Opa, calma ai, pudico leitor! Não repreenda o colega cronista. “Putta" em latim significa “menina", “mulher jovem". E sendo digno de censura, em priscas eras, que uma moça tivesse um filho antes de casar-se, nada mais natural que o termo “filho da puta" viesse a ganhar status pejorativo. A expressão já foi palavrão, mas está na boca do povo e hoje figura até duas vezes numa mesma crônica! Em que mundo nós estamos?

Que lhe parece mais importante, entretanto? O tempo ou as palavras? Quanto às últimas, não me arrisco, faz parte da evolução de quaisquer línguas os estrangeirismos, as corruptelas, as mudanças de sentido. É estranho, mas natural. Se as línguas, as instituições e as pessoas não mudam, é porque, de fato, existe algo errado. E já que tocamos no assunto, é exatamente por isso que pretendo desacelerar, deixar que o dia flua mais lento e mais leve, possível de ser plenamente saboreado. Para que ele sim, jamais perca o sentido. Para que eu não fique embasbacado, mirando, paralisado e sem palavras a parede, com a coberta esticada sobre a cama, a barra presa nas mãos – e o gosto amargo na boca de quem lamenta algo que vai se perdendo assim, tão displicentemente.