Deus ex machina
“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.” (Leon C. Megginson)
Era um dia normal na vida do contínuo, em um determinado burgo, ligeiramente afastado da capital fluminense. Até que, em meio à confusão da programação da TV, ele se deparou com um mundo estranho e mágico, habitado por seres fantásticos. Estava acontecendo, afinal – e ele mal podia acreditar.
Chegara do trabalho por volta das dezenove, tomou um banho quente e preparou o jantar. Geralmente, comia qualquer coisa; após ter sido deixado pela mulher, com salvas de irresponsável e mentiroso (que ressoavam muitos anos depois), um macarrão instantâneo com ovos mexidos era-lhe suficiente.
“Desculpa esfarrapada”, foi o que ela disse. Agora, porém, ele podia provar. Estava ali, na TV. E a TV não mente jamais! “Muito em breve, seremos todos trocados por máquinas”, repetiu ele o que ouvira na repartição. Ele mesmo não havia acreditado. “O mercado de trabalho não é mais o mesmo: um funcionário ocupará a vaga de três; outros tantos prestarão serviços eventuais, esporádicos...”, comentou o gerente, num assombro, disfarçando enquanto girava a colherzinha na xícara branca de cerâmica. “Com esse negócio de inteligência artificial, ai vai ‘ferrar' tudo de vez”, concluiu e se afastou.
Puta que o pariu. Era verdade. A propaganda do intervalo comercial era enfática e assertiva. “Seus funcionários pedem-lhe aumentos? Tiram licenças médicas? Chegam atrasados? Protelam a produção? Seus problemas acabaram!”, estrugia a locutor em off enquanto imagens de funcionários nas mais variadas situações seguiam-se umas após as outras, simulando um escritório qualquer, assustadoramente similar ao seu emprego. A última imagem congelava feito uma polaroide e duas mãos a rasgaram ao meio. As cenas que a substituíram eram de homens feitos de lata: cabeça, pernas e braços ligados ao tronco por juntas de metal, sentados em mesas de escritório, digitando coisas em teclados de computador, com semblantes felizes.
“Não pode ser...”, pensou o contínuo, sentindo o corpo estremecer enquanto abandonava o jantar sobre a mesa de centro. Não era uma piada. A empresa de renome apresentava somente vantagens em se adotar o programa que o personagem metálico representava. Poder-se-ia perfeitamente abreviar de cinco a dez postos de trabalho, com aumento de produção, redução de prazos e custos, “por uma bagatela que sua empresa pode investir”.
Apoiou os cotovelos nas coxas e afundou o rosto entre as mãos. Não sabia se ligava para a ex-mulher e esfregava a verdade em sua cara ou se preparava um novo currículo. Ligar não, ela cobraria a pensão alimentícia. Não, não. Definitivamente não.
Desligou a TV. Quem sabe o que poderia surgir após os comerciais? No silêncio que se fez, teve uma epifania providencial, divina. Sagacíssima e oportuna revelação: nem tudo estava perdido. As máquinas poderiam até elaborar relatórios mais complexos, pagar contas e controlar sistemas. Poderiam até fazer café. Mas quem ia servi-lo? E a dose exata de açúcar, a medida perfeita de duas gotas e meia de adoçante? As máquinas não saberiam. Tampouco poderiam concordar com o chefe – ainda que estivesse equivocado; elogiar o novo corte de cabelo e suas ideias; rir de suas piadas; lavar o seu carro; buscar o Júnior na escola. Não, não. Definitivamente não. As máquinas não seriam capazes disso.
Ergueu-se, sentindo um sorriso enorme ocupar o rosto, e entrelaçou os dedos acima da cabeça, até estalarem, vigorosamente. Suspirou. Não perderia o emprego para um software, robô ou uma inteligência artificial. Nem mesmo para uma unidade qualquer de homo sapiens. Ao contrário, considerava-se, agora, perfeitamente apto a subir de posto. Gerente, quem sabe? “Conversa fiada!”, dirá a mulher. Agora, porém, ele podia provar.
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