Durma-se com um barulho desses
Estava eu lá, no finalzinho da madrugada, os passarinhos já começando a cantarolar. Um após o outro, como numa orquestra muitíssimo bem arranjada, o maestro Sabiá empoleirado em cima de um fio conduzindo os acordes alados. Levantei-me pouco antes do sol apoiar os dedos no horizonte para ir ao banheiro, voltei, deitei-me e... quem disse que durmo? Ora, cacetas. Agora, as maritacas. Aí é que não durmo mesmo.
Morfeu, Morfeu... por que me abandonaste? Numa hora dessas, em vez de relaxar, a mente vagueia pelos acontecimentos do dia anterior, educação dos filhos, contas a pagar, aquela bendita manutenção no carro, maritacas, sabiás, tico-ticos... Opa! Viram? Não consigo relaxar e daí a pouco já estará na hora de ir para o trabalho. Putzgrila. Como é aquele exercício mesmo? Respirar lentamente com o diafragma para desacelerar o coração e induzir o sono. É claro que não deu certo. Um par de qualquer pássaro desses está tentando entrar no forro do telhado. Durma-se com um barulho desses!
Morfeu. Em nossa cultura ele ficou conhecido equivocadamente como o soberano do sono, mas originalmente ele é o deus dos sonhos, irmão de Hipnos (este sim, deus do sono, gêmeo de Tânatos, deus da morte). Ora, ora, terráqueos. Eu aqui precisando dormir e rezando pro santo errado. Mas para quem está se afogando, jacaré vira toco, concordam?
Contas a pagar, luz... Sim, sim. Esta tarde houve um apagão de eletricidade devido a “problemas externos”. “Problemas externos...”. Conversa fiada! Eu sou maníaco por conspiração. Pra mim isso é história pra boi dormir. Caramba. Eu queria dormir pelo menos mais uns cinco minutinhos. Será que foi o café que eu tomei depois das 17 horas? Há quem diga que a gente vai ficando sensível a essas coisas com a idade. Vai saber? Um cafezinho com bolo de aipim não faz mal a ninguém. E cairia muito bem agora.
Acordado e com fome. Acho melhor levantar, ficar aqui não vai dar em nada mesmo. Virei-me de lado. Agora vai. Não, não vai. O vizinho ligou a moto para ir trabalhar. Deu uma arrancada... a moto morreu. Mais dois quiques e ela pegou novamente. Foi-se, finalmente. Ainda posso ouvi-lo no final da rua – e eu não fazia questão alguma disso. Às vezes é preciso aprender a ignorar as coisas. Quem sabe um dia?
Peraí, existe outro macete. Contar cordeiros. Cordeiros não, carneiros. Fiquei tentando visualizar os ovinos com aquela pelagem branquíssima, o olhar meio vazio, distante. Mas não conseguia me concentrar, perdia a conta quando chegava lá pelos vinte e um e precisa recomeçar a conta novamente. O que mais eu poderia contar que tivesse um número maior? Ah, já sei! Candidatos a vereador! Há tantos que eu acredito que deva existir um para cada eleitor.
Um candidato, dois candidatos... Cochilei que nem percebi. Acordei novamente com o céu claro – os putos dos passarinhos, lobos e cordeiros, já estavam bem longe a uma altura dessas. “Amor! Amor! Você está perdendo a hora! Tem vergonha disso não, seu dorminhoco?”. E levantei-me de um salto, inspirando o ar vigorosamente pelas narinas.
Durma-se com um barulho desses.
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