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Em algum lugar do Paraíso

Por George dos Santos Pacheco
02/12/20 - 11:42

Era uma típica manhã de primavera, de céu azul e milagrosamente límpido. A brisa fria, que corria quase que de maneira religiosa, fazia todos que pudessem buscar seu cantinho sob o sol para se aquecer. Menos ele. O tempo, as estações, religiões e relógios, já não lhe afetavam nem importavam mais. O Além é um lugar sem espaço, sem tempo, sem começo, e sem fim, nem frio, nem quente, onde os homens perambulam a esmo, aguardando o Juízo Final – após os Juízos nossos de cada dia. A vida eterna é feita de escolhas, afinal.

Estavam ali também os anjos, circulando entre as almas e os viventes, anotando quaisquer coisas em pranchetas, com peninhas brancas. Sem culpa, sem medo ou rancores. Vez em quando atravessavam a quarta parede para ajudar numa travessia de rua, um trocado para um lanche e até mesmo para uma conversa inesperada.

Ele mal fazia ideia de quanto tempo estava ali, as almas frequentemente se confundiam quanto a isso. Caminhava com as mãos no bolso do casaco de moletom, assobiando qualquer música antiga, quando se encontraram.

– Ô, rapá! – gritou o homem, à distância, e se aproximando rapidamente.

– Cara, que legal te ver por aqui! – disse o outro, abraçando o amigo.

– Bacana isso tudo, né? E eu achando que ia sentir dor, aquele negócio todo. Foi tão rapidinho que mal eu percebi.

– Como foi a passagem?

– Eu atravessava a rua quando uma moto avançou no corredor e me acertou. Você sabe que a mobilidade urbana não está lá essas coisas, por aqui, não é? Foi agorinha mesmo, olha a confusão ali! Mas fazer o quê? Eu não tive culpa, né?

– Pois é! De alguma coisa seria, enfim. – refletiu o amigo, quando um dos anjos passou por ele esticando o punho cerrado para um cumprimento. – Fala aí! Beleza? – disse o homem, sendo respondido brevemente por um “show de bola” enquanto o anjo se afastava apressadamente para seus afazeres. Anjos sempre têm muito o que fazer.

– E você, irmão?

– Ah, não sei quanto tempo faz. O muro da laje cedeu comigo e eu bati com a cabeça. Cheguei a ficar internado, mas você sabe como anda a saúde pública. Peguei a tal gripe importada e “abotoei" o moletom.

– Que coisa, hein? Sinto muito. E sua esposa?

– Casou de novo. Acho até que sentiu-se aliviada, já devia estar me dando uma bola nas costas faz tempo. Que culpa eu tenho, poxa? – murmurou com ar tristonho quando uma visão chamou-lhe a atenção. – Cara, olha quem vem vindo ali!

– Você por aqui? Bicho, eu jurava que nem chegaria perto desse lugar. Você lembra que está me devendo dinheiro, né?

– Lembrar, eu lembro. Mas infelizmente a gente vem com os bolsos vazios para cá. – respondeu-lhe o outro, franzindo o cenho. Era um sujeito dado a toda sorte de falcatruas, malandragens e corrupção, enquanto vivo, mas que também era filho de Deus.

– E como ‘tu’ morreu, seu pilantra? – perguntou o anfitrião daquela reunião de almas. O outro suspirou incomodado.

– Fui assaltado, em plena praça. Um moleque, rapá! Um mo-le-que! Me abordou por causa de um celular! Acreditam nisso? Acho que furou meu baço com a faquinha. E onde estavam os anjos, os santinhos? Desapareceram assim, ó, do domingo pra segunda. Ninguém veio me acudir! Nin-guém! Vocês sabem que a segurança não anda bem das pernas, não é? Aliás, a Educação, a Saúde e o Trânsito também! Olhem lá, olhem lá! Outro atropelado! Misericórdia!

– E quando foi isso? – perguntou um dos homens.

– Ah, foi depois das eleições... – respondeu meneando a cabeça, pesaroso. – Mas que culpa tenho eu?


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