En avant toutes!
“A mesma praça, o mesmo banco. As mesmas flores, o mesmo jardim.” (Ronnie Von)
O terráqueo já se deu conta, caminhando distraidamente por aí, nesses dias corridos, que todos esses lugares, esses antigos prédios e ruas, todos eles guardam infindáveis histórias? Ora, se cada homo sapiens é uma enciclopédia viva, o que dizer da terra onde pisamos? É simplesmente incrível e fascinante imaginar os mais fantásticos, insólitos e prosaicos acontecimentos nas brenhas do Morro Queimado.
Será que em cantos escuros de bares já foi urdida a deposição de prefeitos e tantas outras tramas políticas? Essas casas, apartamentos e lojas já testemunharam a febril paixão dos adúlteros? Crimes, chantagens? Por essas calçadas alguém já foi morto a tiros? A sandália de alguém já arrebentou ao correr para atravessar a rua e não ser atropelado? Um transeunte qualquer teve a sacola rasgada e um monte de frutas espalhou-se pela calçada? Uma mocinha ou um senhor de idade avançada teceu incansavelmente cartas de amor não correspondidas? Quantos relacionamentos não tiveram fim às lágrimas nessas mesmas calçadas, nessas mesmas ruas, nessas mesmas praças?
Um sem número de coisas aconteceram aqui antes de nós e tantas outras acontecerão doravante. Já se pegou refletindo sobre essas coisas, cara pálida? Era nisso que eu pensava, suspirando, durante a apresentação da quadrilha da quermesse de São João, em frente a matriz. Tudo se deu porque lembrei de uma matéria divulgada no Jornal do Comércio, em 3 de julho de 1829. O contexto era justamente a festa religiosa, mas o acontecimento não era nada festivo: tratava-se de um assassinato revestido de requintes de crueldade.
“Acaba-se de commeter na nova Villa hum assassinio revestido de circunstâncias que augmentão o horror d’este crime. Allegro Pai de famílias residente no Rosário chegou a 24 de junho à nossa Villa, para n’ella fazer baptizar hum seu filho. O dia 24 era dia Santo: o tempo estava bello, e havia hum numeroso concurso dos habitantes das circunvisinhanças. Nada pressagiava que este dia consagrado a deveres religiosos e à recreação, se terminaria com uma scena de sangue. (…) Huma das occorrencias mais atrozes d’este assassinio, e que distingue o caracter dos assassinos, he que depois de haverem saciado a sua ferocidade, havendo-lhe aberto o cranco a pancadas de páo, quebrado todos os dentes, e atravessado huma faca pelo pescoço, temendo-se talvez que a morte revellasse os criminosos, cortarão-lhe a língua.”
Interessante notar a maneira como o jornal publicou a notícia, algo bem mais literário, com características de conto ou crônica, bem como a forma da Língua Portuguesa da época. Tudo isso me fez evocar na mente a cena da festa na praça: a quadrilha apresentada, as barraquinhas, as famílias, as guloseimas, a música, as roupas (e até o frio), tudo isso também era característico de uma outra época. Imagine algum jovem de 1829 conversando com outro, sem os “pega a visão”, os “lá ele”, os “beleza” e os “show de bola”. Ninguém era “crush” de ninguém e muito possivelmente, nem mesmo “paquera”. Nem o trem passava por aqui ainda. Homens e mulheres assistiam às apresentações e degustavam os quitutes sem celulares na mão para fotografarem os filhos e postarem nas redes sociais. Outros tempos, meu senhor!
Corri o olhar ao redor. Aquela agência do Bradesco, a poucos metros de nós, cerca de cem anos depois daquele assassinato de São João, era o Cinema Glória, em chamas, assim como outros cem anos depois o casarão da Arp. Deus do Céu! Imagine, cara pálida, presenciar uma cena dessas? Se o nosso grupamento de Bombeiros Militar foi criado somente em 1975, como se combatia os incêndios naquele tempo? Não faço a mínima ideia. O que sei é que com a destruição do estabelecimento, outro ergueu-se no local, o saudoso Cinema Eldorado, para, por fim, também dar lugar ao banco – que um dia, por sua vez, se tornará uma igreja ou um supermercado. Quem sabe?
“Fagulhas, pontas de agulhas, brilham estrelas de São João!”. Ora, a praça é a mesma de outros tempos, as pessoas e acontecimentos são os mesmos, apenas falamos outro Português (está bem, os costumes também são outros, mas a essência deles é idêntica). E assim correm as horas, os anos e tudo, tudo se vai. Vão-se os dedos e também os anéis, apenas a memória permanece. Por isso é tão importante cultivar boas lembranças nesses dias tão velozes, pois algumas coisas fixam-se pelas lentes dos celulares, ganham os jornais e estarão lá até que as traças os corroam, outras guardamos em lugares mais preciosos. E estarão lá para sempre.
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