Enquanto isso
“E agora, quem poderá nos defender?” (Florinda Meza)
Cheguei à consulta cerca de meia hora adiantado. Apresentei-me à atendente, entreguei documentos e preenchi formulários, timbrados com o brasão da instituição. Havia apenas eu na sala de espera, aquele atendimento era muito concorrido, mas eles cuidavam para os horários nunca baterem e consequentemente os clientes não se cruzarem nos corredores. Sigilo total, era o que dizia o cartãozinho que chegou até mim por um amigo.
Depois de toda burocracia, fiquei sentado aguardando, estalando os dedos por nervosismo. A sala era ampla e completamente branca, a não ser por alguns detalhes prateados em móveis. As paredes, o teto, o piso em porcelanato, o grande tapete felpudo, o sofá em courvin, a mesa da secretária, o monitor do computador… tudo, tudo muito branco. Chegava a incomodar as vistas.
Em certo momento, cansei-me daquela espera – por mais que só tivessem se passado apenas dez minutos – e puxei papo com a moça loira atrás da mesa. Tinha a pele delicada (e muito branca!), as bochechas rosadas em um rosto triangular e os lábios bem delineados pelo batom vermelho. Olhou-me por cima dos óculos em formato “aviador” quando a chamei.
– Pois não? O que disse?
– Perguntei se você acha que vai demorar muito.
– Eles não costumam demorar. De qualquer forma, o senhor ainda está bem adiantado para o horário marcado… – concluiu num sorriso de dentes (branquíssimos) alinhados pelo uso de aparelho ortodôntico fixo transparente.
– Desculpe minha impaciência… – sorri sem graça.
– Não precisa se desculpar, todos estão impacientes quando vêm aqui! – acalmou-me, retornando a digitar na máquina. Calei-me por algum tempo, ouvindo “Garota de Ipanema” tocando em instrumental na música ambiente do escritório.
– Você também tem… você sabe… – rompi o silêncio, finalmente.
– Poderes? Quem me dera! Sou uma reles secretária. Organizo arquivos, faço cópias, preencho formulários, controlo a agenda de atendimentos e faço o cafezinho. Não precisa ter nenhum poder especial para isso!
– É… – concordei por educação. Levantei-me após um suspiro de impaciência e comecei a caminhar pela sala. A secretária continuou seu serviço, ignorando-me completamente, como se eu nem mesmo estivesse ali. Aquilo foi estranho. A música ambiente foi interrompida por um sinal sonoro e meu nome foi chamado. Sorri e caminhei em direção à grande porta e a loira também sorriu.
– Boa sorte! – disse ela, e eu entrei. A sala era de grandes proporções, com uma mesa oval igualmente grande, além de uma tela de LED colossal, em que várias imagens se revezavam. Era uma principal e quatro que ficavam no canto da tela, em tamanho menor. Flagrantes de diversas partes do mundo, constantemente monitoradas pela equipe. (Falei que a sala era exageradamente branca?)
– Sente-se… – disse Batman, não muito simpático, sentado à cabeceira da mesa, com as pernas cruzadas, uma mão apoiando o queixo enquanto analisava uma folha – que deduzi ser o formulário que preenchi anteriormente. Obedeci prontamente e sentei-me.
Aguardei de forma silenciosa, observando as imagens do monitor mudarem, ouvindo o farfalhar das folhas na mão do homem-morcego. Subitamente, o Super-Homem entrou pela janela, como uma ventania e o som de sua orquestra ressoou no compartimento. Aterrissou fazendo o passo “moonwalker”, mas conteve-se, sem jeito, ao me ver.
– Ih! Foi mal, não sabia que estava atendendo… – comentou num sorriso sem graça.
– Já disse pra você não entrar aqui assim, cara. – murmurou Batman, sem desviar os olhos das folhas.
– Pô, foi mal aí, Bruce! – desculpou-se novamente, ao puxar uma cadeira e sentar. – Fala aí! – cumprimentou-me levantando o polegar da mão direita fechada. Apenas acenei com a cabeça, com um sorriso tímido.
– Também já disse para não me chamar assim na frente dos clientes. – continuou, levantando o rosto brevemente para o pito. Clark apenas virou os olhos, incomodado, no momento em que Robin entrava por uma porta dos fundos, limpando o suor da testa com as costas da mão.
– Santa Faxina, Batman! O arquivo está organizado como você pediu. – disse ele, cumprimentando-me em seguida. – Opa, beleza! – disse sentando-se perto de seu companheiro, que apenas acenou positivamente com a cabeça. Flash passou ali rapidinho e foi embora, sem falar com ninguém.
– Aqui diz que você quer nossa ajuda para… resolver o problema da “Saúde, Segurança e Educação”. O que você quer dizer exatamente com isso? – perguntou Batman, finalmente me olhando nos olhos.
– Ora, eu sei perfeitamente que vocês têm conhecimento do que está acontecendo no Brasil. – comentei fazendo um meneio de cabeça em direção à tela. Vocês viram o estado em que estão os hospitais e escolas públicas? O índice de criminalidade aumentando dia após dia, as denúncias de corrupção nos telejornais… Eu vim aqui em nome da nação brasileira! Ninguém aguenta mais isso não, cara!
– Mas no que exatamente a gente pode te ajudar? – perguntou o Super-Homem. Robin levantou-se e procurou a porta, saindo de fininho.
– Vou buscar um café, Batman…
– Faça isso, por favor… – adiantou-se Clark, enquanto aguardava minha resposta.
– Ora, como podem me ajudar! Vocês têm superpoderes! Podem ir lá e acabar com essa sacanagem num estalar de dedos. – esbravejei e Batman ergueu a mão para um protesto. – Tudo bem, você não tem superpoderes, mas tem uma mente brilhante. E todos os outros? Sei lá, o Lanterna-Verde pode fazer uma puta jaula com o anel mágico dele prender toda aquela corja.
– O Lanterna-Verde está de férias, infelizmente. Contudo, eu percebo que o problema de vocês são os representantes. Nenhum superpoder, seja superforça, supersopro, olhar de raio-x, anéis mágicos, supervelocidade, nada disso vai ajudar vocês. – disse Bruce Wayne, com elegância.
– Porra, e o que eu faço então?
– A maior arma que vocês têm é o voto. Vocês precisam votar conscientes e… – aconselhou o Super-Homem, mas eu o interrompi.
– Ah, não vem com essa não. Todo ano de eleição é sempre o mesmo papo furado: “Vote consciente!” – disse num arremedo. – Como eu vou votar consciente em políticos corruptos de uma sociedade corrupta, com instituições falidas, sem um mínimo de crédito com a população? Como vou fazer isso? Alguns (e olhem que são muito poucos) se tornam exceção, mas a maioria… – concluí num suspiro, balançando a cabeça negativamente.
– Agora você chegou ao ponto certo. Representantes políticos corruptos de uma sociedade corrupta. Ora, se a sociedade é corrupta, é evidente que os seus representantes também o serão. E isso não é problema exclusivo do Brasil, em todo lugar é assim (inclusive em Gotham). Então, para solucionar o problema, vocês devem começar por si mesmos. A sociedade é quem deve mudar…
– Mas, mas… isso vai demorar muito! Nós precisamos de soluções é agora! – reclamei, me empertigando na cadeira. Acho que cuspi um pouco ao me exaltar.
– Já ouviu falar que quem planta tâmaras não as colhe? – comentou Batman calmamente, cagando e andando para meu descontrole.
– Quer dizer então que devo plantar tâmaras? – perguntei baixando o tom de voz, incrédulo com o comentário. A tamareira leva anos para produzir frutos.
– Essa é a metáfora mais adequada. A mudança não será para você, mas para seus filhos e netos. – completou o raciocínio o Super-Homem, como se aquela resposta já fosse ensaiada por eles há muito tempo. Provavelmente era.
– Meu amigo, meu avô e meu pai vem “plantando tâmaras” há décadas e até agora eu não saboreei nenhuma delas.
– Você precisa fazer sua parte. – disse enfaticamente o homem-morcego (e só agora me dei conta de como era adequado seu pseudônimo).
– Então está certo, vou fazer minha parte. Eu plantarei tâmaras e vocês que plantem batatas! – vociferei ao me levantar com rispidez.
– Acalme-se! Assim você não vai chegar em lugar nenhum… – aconselhou o homem de aço que caiu do céu. Robin apareceu de repente com uma bandeja inox com xícaras (brancas) e estacou ao ver a discussão.
– Ora, rapaz… eu que confiava tanto em vocês! Sou muito ingênuo mesmo… vocês só resolvem problemas em Gotham ou Metrópolis. O Brasil só serve para pular Carnaval e ver bunda, não é?
– disse ao segurar a maçaneta da porta de saída e me virar para trás.
– Não vai ficar para o café? – perguntou o menino prodígio, enquanto o Batman e o Super-Homem balançavam a cabeça negativamente e riam sem graça, como se debochassem do meu descontrole.
– Vá à merda com esse teu cafezinho, seu babaca. Vou fazer minha parte e esfregar o Brasil na cara de vocês! A mudança tem que ser aqui e agora – e vai ser! – resmunguei e saí batendo a porta. A secretária estava distraída verificando as atualizações da rede social no smartphone. Seu batom estava levemente borrado.
– Então, tudo certo? – perguntou sem desgrudar os olhos e a ponta do indicador da tela sensível do aparelho.
– Ah, muito certo. O Brasil mandará lembranças… – disse e segui pelo corredor que conduzia para a saída do prédio. “Garota de Ipanema” continuava tocando como música ambiente.
Ora, vejam só… o Brasil do jeito em que está e essa rapaziada nem aí. É claro, o problema não é deles. A maioria de nós, inclusive, só se dá conta quando precisa dos serviços públicos de Educação, Saúde e Segurança. Enquanto isso… não importa, porque no domingo tem futebol na TV e em fevereiro tem Carnaval (e eu tenho um fusca, um violão, sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa).
Enquanto isso…
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