Está ficando difícil
“A preocupação com a administração da vida parece distanciar o ser humano da reflexão moral.” (Zygmunt Bauman)
“Dinheiro, Débito, Crédito ou Pix?”, perguntou o rapaz do caixa. “Débito, por favor”, respondi fleumático, enquanto ele terminava de ensacolar os produtos. “É aproximação? Não? Coloque o cartão aqui por favor. Pode digitar a senha.”, disse ele, olhando indiferente além de mim. Na tela do caixa, as dezenove horas, dez minutos e vinte e cinco segundos brilhavam no canto superior esquerdo, junto ao nome do operador. “Quer sua via?”, perguntou, após a operação se concretizar e a gaveta abrir-se num estalo. Ora, e por que não?
Está ficando difícil, bravo e diligente leitor. Eis que, à minha resposta, o atendente fechou a cara, calcando enervado a polpa dos dedos na tela do aparelho, rasgando a filipeta com quase murmúrios, a expiração acelerada saindo pelas narinas. “Obrigado, bom trabalho…”, despedi-me ao pegar o cupom. Obrigado? O bacana nem me olhou nos costados.
Que fiz eu, afinal? A via do cupom do cartão de débito não era minha, segundo ele próprio? Então, o que havia de errado em desejar o que já era meu? O erro não foi esse, meu senhor, o erro foi “fazer questão de um papelzinho”, gerando consequentemente uma tarefa a mais para o venerável personagem de nossa croniqueta. Dá para acreditar?
Ah, sim. Muito bem pensado, confuso terráqueo. Não se trata de uma tarefa a mais daquela ocupação, extenuante sacrifício, mas tão somente uma parte das atribuições pelas quais ele é pago. Não é? Perdoe minha franqueza, mas é sim. O lance é que a maioria de nós não está querendo fazer nem o básico do básico, o minimum minimorum do ofício. O caixa do mercado não quer caixar, o motorista não quer motoristar, o estudante não quer estudar, o advogado não quer advogar, o médico não quer medicar, o funcionário da prefeitura não quer funcionalizar, governantes não querem governar.
Absurdo flagrante e impudico. O tupiniquim quer comer pipoca sem estourar o milho. Tomemos como exemplo, um lanche, desconversado leitor, um singelo e prosaico lanche em nosso sagrado recanto doméstico. Realizado o farnel e constatada a imperiosa necessidade de se lavar a louça, lá se vai uma saraivada de murmúrios e protestos pela tarefa. Ninguém quer. Uma coisa não leva a outra? “Tu te tornas eternamente responsável pela louça que sujas”, não foi isso que a raposa de Exupéry disse?
Ingenuidade minha. O camarada não quer ao menos lavar a louça, como posso esperar que imprima um cupom, cacetas? Ora, bolas. Ninguém está no Jannah, no Svarga ou outro paraíso celestial, caminhando por prados e campinas verdejantes; estamos aqui e agora, no plano terreno, e nosso sustento depende do nosso trabalho. E ser grato por ele é um bom começo.
Por conta dessas e outras, estou pensando em pegar a família e passar umas férias num resort intergaláctico all inclusive, com vista pra lua e cometas grátis, palmeiras espaciais e piscinas azul anil, amplo estacionamento para espaçonaves, qualquer coisa assim. Porque, Papai do Céu que me perdoe, mas conviver com o ser humano está ficando cada vez mais difícil. Talvez, até a próxima crônica as coisas tenham mudado. Ou não.
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