Estranha obsessão
“Paixão é uma obsessão positiva. Obsessão é uma paixão negativa.” (Paul Carvel)
Depois que ela partiu, coisas estranhas começaram a acontecer. Quadros tortos nas paredes, portas e gavetas de armários entreabertas, sandálias reviradas, talheres, canetas e todo o tipo de utensílios fora do lugar. Dia após dia, encarava aqueles insólitos acontecimentos. Era um pesadelo sem fim.
Resolveram morar juntos cerca de três meses após se conhecerem. Foi uma paixão arrebatadora, premente e incontrolável... quase uma obsessão. Não podiam perder mais tempo – consenso era já haverem perdido tempo demais. “Foram precipitados, no auge de sua paixão?”, pensou ele muitas e muitas vezes durante aqueles cinco maravilhosos (e também tão conturbados) anos. Não sabia responder. Preferia não responder. Ele era disciplinado, metódico e demasiadamente regular. Ela, autêntica, “senhora de uma espontaneidade e praticidade absurdamente irritantes”. Era mais do que ele poderia suportar.
“Você está ficando... ficando doente. Isso é doença, e você precisa se tratar!”, insistia ela, com o rosto corado, os olhos marejados de lágrimas. Já lera isso em algum lugar... era uma espécie... uma espécie de transtorno, mas ele não dava ouvidos... afinal, não adianta chamar quando alguém está perdido. Ela que mudasse seu modo de ser, ela é quem estava errada. Não era? Espontaneidade não pode ser desculpa para a displicência, não mesmo.
Então, ela partiu. Por meses sofreu, chorando e gemendo, buscando abrigo na bebida. Ao cabo, também perdera o emprego. Deus, que sofrimento! De fato, sua vida tornara-se um pesadelo. Havia algo estranho naquilo tudo. Sentia-se dominado por uma opressão sem tamanho, como que assombrado por algo... parecia… parecia que alguma coisa estava fora do lugar. E isso o perturbava sobremaneira. As noites eram piores, ele simplesmente não conseguia dormir, por mais que quisesse. Em plena madrugada, os olhos mantinham-se vigilantes; os ouvidos atentos a todo e qualquer ruído estranho, persistente ou repetitivo. Nada. Tudo estava incrivelmente perfeito.
Contorcia-se na cama, tomado de aflição, rolando de um lado para o outro. Ficaria maluco se não fizesse alguma coisa. Demorou, mas, percebera, enfim, que não sentia falta da companhia da mulher, da sua pele macia e cheirosa, do sorriso agradável, dos cabelos sedosos. Não sentia falta daqueles olhos amendoados e atraentes, do timbre de voz tão desgraçadamente melodioso. O que lhe tocava era a sua desordem, sua bagunça, sua ausência de senso de organização, de disciplina, de harmonia, sua irritante e quase infantil desatenção a detalhes. Era exatamente isso que estava fora do lugar.
Então, após um suspiro resignado, afastava o lençol e se levantava, caminhando preguiçosamente pelos cômodos da casa, ainda ausentes de luz. Com a ponta do indicador tocava a moldura dos quadros nas paredes, inclinando-os, um a um. Deixava as portas e gavetas de armários entreabertas, revirava as sandálias, embaralhava os talheres, espalhava canetas e todo o tipo de utensílios pela casa para, no dia seguinte, logo pela manhã, organizá-los meticulosamente, sentindo o corpo tremer de inquietação, o coração acelerado, a respiração entrecortada. Aquilo era sua verdadeira paixão: arrebatadora, premente e incontrolável. Era quase uma obsessão.
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