Eu escuto cada coisa por aí

“Sorte é o que acontece quando a preparação encontra a oportunidade.” (Demétrio, o Cínico)

Como diria o mestre Ponte Preta, “cronista que escreve sobre o diário não devia ter nunca automóvel... a gente se imiscuindo é que colhe material para estas mal traçadas”. E eu escuto cada coisa por aí, terráqueo…

Tem de tudo: prescrições geniais, banais, vãs e óbvias. Uma tremenda falta de educação escutar a conversa dos outros, não é? Desculpe, não é o caso. Não pude evitar, afianço.

Era por volta das dezesseis horas, havia muita gente na rua. Após contornar o quarteirão uma segunda vez, esticando o pescoço para o lado direito, decidi que não havia alternativa a deixar o carro num estacionamento particular. Mas alguém aí tem dúvida que, se houvesse uma vaga pública, era lá em que eu colocaria o veículo?

Pois bem. Peguei o ticket na cabine, agradeci e posicionei o veículo. Em breves minutos conferi a pequena lista de afazeres – se não estiver escrito, é bem provável que eu esqueça alguma coisa – e saltei do carro para concluí-los em até uma hora.

Ao passar pelo portão, verificando no cupom do estacionamento a hora exata em que o deixei ali, quase esbarrei na calçada com uma idosa guiada por uma dama de companhia.

Caminhavam lentamente, a senhora estava bem vestida, os cabelos bem cuidados, olhar firme. De braços dados à mais jovem, a mulher palestrava sobre algum assunto em comum. En passant, naquele corte da conversa, ouvi ela dizer “a vida é feita de escolhas”. “Como é que é, senhora?”, pensei caminhando, virando o pescoço de lado.

Continuamos nossos caminhos e é bem provável que ambas nem tenham notado minha presença. Mas a fala da senhora acendeu uma luz lá dentro. Não era a primeira vez que eu ouvia tão sábia erudição. Aliás, todos que, após um pigarro, eloquentemente pronunciaram o loquaz adágio, possuíam o mesmo perfil – e foi exatamente isso que me chamou a atenção.

É, cara pálida. Todos, sem exceção, que arrotaram a máxima, eram pessoas bem sucedidas, bem posicionadas socialmente, com bons empregos, bom nível de estudo, esclarecidas, pessoas que, enfim, tiveram muitas oportunidades na vida. Oportunidades boas e ruins, é verdade.

Porém, oportunidades que a maioria não teve. E isso – e o digo com o dedo em riste – implica diretamente nas escolhas. Ora, se lá no primeiro parágrafo eu tivesse tido a oportunidade de uma vaga pública, não teria escolhido o estacionamento privado, não teria encontrado a filósofa da sociedade moderna, não teria ouvido o seu preceito. Eu escolhi a única opção possível, ora bolas, e assim é com quase todo mundo nesse nosso mundão de meu Deus.

As escolhas são feitas diante das opções que temos e jogar na cara dos outros que a própria situação é tão somente fruto de suas escolhas é ser reducionista, é simplificar demais as coisas. Mais que isso: é ser cruel e nocivo, porque, repito, as pessoas não têm as mesmas oportunidades e opções, ora cacetas. Quem nos dera!

Veja bem, indignado terráqueo, se não entender alguma coisa, basta levantar a mão. A reprodução dessas ideias nem sempre é realizada de maneira consciente, aliás, quase nunca é. Por isso é tão importante um puxão de orelha de vez em quando, para nos despertar do transe. Essas ideias erráticas ficam zanzando o tempo todo em nossas mentes, primeiro, porque permitimos e segundo, porque são implantadas e alimentadas todos os dias pelos aparelhos ideológicos do Estado e por todos nós, numa reação em cadeia, como num círculo vicioso.

A vida é feita de escolhas? Falácia pura, conversa fiada! Se você escolheu ler essa crônica até o final, é porque teve essa oportunidade. Se você escolheu um bom estudo, é porque teve essa oportunidade. Se você escolheu um bom emprego, um bom relacionamento, e até mesmo uma boa vaga de estacionamento, é porque teve essas oportunidades, cacetas. Por isso, nunca deixe de valorizar as suas oportunidades. E por último, e não menos importante, não esqueça de que há sempre alguém por aí que não as teve.