Eu vou falar, hein?
“Uma mãe é capaz de ensinar mais do que cem professores.” (Textos Judaicos)
Eis que numa dessas reuniões sociais, um médico e um advogado conversavam, profundamente empolgados em suas palestras. O médico era um cirurgião cardíaco experiente, com cerca de quarenta e poucos anos, bastante dedicado à profissão. Dividia-se entre Friburgo e o Rio de Janeiro para cumprir plantões em hospitais públicos e particulares. O advogado era um pouco mais jovem, mas nem por isso, menos experiente. Era membro de um famoso escritório de advocacia da cidade, defendendo causas trabalhistas e civis, com uma porcentagem altíssima de sucesso nos processos impetrados.
– A gente sai da faculdade muito cru, na verdade. – explicou após virar a taça, de modo solene, e continuou. – Lidamos com vidas, que fique claro. Então, quando se quer ser um bom médico, a experiência e a atualização é muito importante, pois agrega um valor inestimável à assistência prestada e ao cuidado com o paciente. – finalizou cheio de eloquência, franqueando a taça para que o garçom servisse mais bebida.
Aí, eu meu empolguei. Virei o restinho do vinho (encorpado e com tanino suave, aroma de groselha preta e notas de grama recém cortada) e também ofereci a taça para o garçom servir mais. Já ia abrindo a boca para injetar minha colaboração na tertúlia, quando fui subitamente interrompido pelo advogado. Franzi os lábios. Tive que calar.
– Na minha área isso também é bastante comum. – glosou ele, falando calmamente, num tom de voz forçosamente descompromissado.
– Sem dúvida... concordou o médico, no mesmo tom.
– Sem dúvida, sem dúvida... repeti, num arremedo, mirando um ponto qualquer no teto.
– Diante das constantes atualizações das normas jurídicas, quem milita em qualquer ramo do Direito, precisa buscar o aperfeiçoamento profissional e intelectual a fim de estar preparado para lidar com as diversas situações que esse mercado exige. – concluiu o doutor advogado, com ainda mais elegância que o médico.
Ora, pois. É agora! “Eu vou falar, hein?”, pensei terminando de mastigar um salgadinho coquetel. Decidi, também eu falar sobre a importância de se manter atualizado: sobre as normas e regras da língua portuguesa, a fim de se elaborar textos e argumentos de qualidade e conseguir transmitir as informações pretendidas de forma clara e objetiva. Pigarreei e já ia iniciar o discurso, quando fui novamente interrompido, dessa vez, por um padre, que também acompanhava a conversa. Franzi os lábios outra vez.
– Eu já passei por situação parecida… – comentou ele, para nossa surpresa. “Como assim?”.
– Sinceramente, eu não vejo como… – disse o médico, juntando as sobrancelhas.
– Não só os médicos, advogados ou escritores, que sejam, precisam estar atualizados. Não foi esse o termo que usou? A experiência e a atualização são, de fato, muito importantes em nossas vidas, mas a humildade em reconhecer que sempre é necessário aprender algo novo é primordial. E isso não é restrito a nenhuma profissão. Todos nós precisamos aprender algo novo. – explicou ele e sorveu delicadamente seu vinho.
– Eu continuo sem entender. As leis de Deus são imutáveis. Como haveria a necessidade de atualização? – insistiu o advogado, com ar de estupefação. E eu comigo, entre um canapé e outro, pensando “esse padre está é ficando doido". Mas ele continuou.
– Conhecem a feira que funciona sábado, na rua por trás da Igreja de São Bento? Vou lá toda semana. Tempos atrás, eu estava na feira, havia acabado de passar numa barraquinha de frutas e segui caminhando, correndo o olhar nas outras barracas. Foi quando o filho de um feirante me parou. “Seu padre, seu padre!”, chamou-me num tom levemente desesperado. “O que foi, meu filho? Esqueci de pagar? Desculpe!”, perguntei preocupado. Eu já estou bem velho e esse tipo de coisa pode acontecer evidentemente. Mas não era nada disso. “Não, senhor! O senhor pagou direitinho. Eu queria só tirar uma dúvida com o senhor...”, respondeu ele contorcendo as mãos à frente do corpo. “Pode falar, meu filho.”, eu disse. “Então, seu padre… é que eu queria saber se... se deixar a sandália virada é pecado.”.
– E o que o senhor respondeu? – perguntou o advogado, com interesse, enquanto todos nós observávamos atentos.
– Eu perguntei, num sorriso, de onde ele havia tirado essa ideia. E ele respondeu que foi a mãe dele quem tinha falado. O menino estava muito aflito e aguardava uma resposta contundente. É ou não é pecado?
– Não sou muito religioso, mas que eu saiba não há nada na Bíblia a respeito. Ou há? – perguntou o médico, em tom de deboche, mas o padre nem se comoveu.
– Não, não há. Como também não há nenhuma relação entre uma sandália virada e a saúde da própria mãe. – argumentou o padre, com seriedade, pegando um salgadinho que o garçom oferecia no momento.
– E o que o senhor lhe disse, então? – perguntou novamente o advogado, erguendo o queixo, num tom quase desafiador. “Olha, se deixar a sandália virada não for pecado, isso aí com certeza é.”, pensei.
– Meus amigos, a principal tarefa de um padre é conduzir os fiéis a um caminho de santidade e de paz. Se eu respondesse que não era pecado, colocaria filho contra mãe; se respondesse que sim, aumentaria a aflição do garoto. O que mais eu podia fazer? O que sempre faço quando fico em dúvida: pedi licença ao garoto e liguei para minha mãe. “Desde que ele tenha desvirado a sandália, não é pecado...”, respondeu ela num sorriso dócil e me convidou para o almoço do dia seguinte. E o garoto seguiu aliviado e de bem com sua mãezinha. Vejam, a minha mãe, já tão velhinha, não cria novas técnicas médicas, não implementa novas normas jurídicas, muito menos tem poder de alterar as leis divinas, mas ela sempre terá palavras para minha paz. – concluiu ele, calmamente, como se encerrasse uma homilia dominical.
O que eu faria, depois disso tudo, terráqueos? Decidi que não ia era falar mais nada! Até porque, lembrei-me, numa súbita epifania, de uma coisa que minha mãe sempre falava quando eu ainda era criança: “Quando for falar, meu filho, cuida para que suas palavras sejam melhores que o seu silêncio”. Bem, na verdade o que ela dizia era “Se você não tem nada pra falar, fique quieto!”, mas o efeito é o mesmo, não é? A língua portuguesa com todas os seus sujeitos, predicados e paradoxos, é importante, sim. Mas mamãe é muito melhor.
O Portal Multiplix não endossa, aprova ou reprova as opiniões e posições expressadas nas colunas. Os textos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores independentes.