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La rasa de la piel

Por George dos Santos Pacheco
13/03/24 - 08:49

“O que quer que aconteça no futuro, confie no destino. Não tente fazer mais nada, mesmo quando sentir.” (Cecilia Krull)

A penumbra do cômodo escondia as alunas, todas sentadas num móvel qualquer, improvisando uma carteira escolar. Uma réstia de luminosidade invadia o quarto pela veneziana da janela, deslizando sobre os seus corpos esguios e delgados, cujos movimentos elegantes assemelhavam-se a passos de balé. O professor explicava minuciosamente e com riqueza de detalhes, a fim de que nada ficasse perdido, a fim de que nada pudesse passar despercebido e pudesse prejudicar o entendimento das meninas.

– O rosto humano é altamente vascularizado e, por isso mesmo, muito sensível. Narizes e orelhas são a ponta dessa estatística, devendo ser a todo custo evitados. – explicou ele minuciosamente, ajeitando o óculos que escorregava.

– E a boca, professor? Na boca pode? – perguntou uma aluna, num sorriso atrevido. O professor corou, desviando o olhar.

– Senhorita, peço que mantenha a seriedade durante as aulas. – disse ele, erguendo novamente o óculos, fitando a mocinha. – Mas sua pergunta é pertinente. Olhos e boca apresentam movimentos involuntários e também são altamente irrigados por vasos sanguíneos. – concluiu ele, enfaticamente.

– Eu te falei, né, minha filha? Mas você só quer sacanagem! – repreendeu a outra, movendo os olhos do mestre para a filha, gesticulando nervosa e envergonhada.

– Ai, manhê! – reclamou, contrariada, cruzando os braços.

– Deixe ela, por favor. Mesmo brincando ela me ajudou com uma informação importante. Os braços e as costas da mão, além da testa, são os melhores lugares. Mas precisamos ser breves, ouviram? E silenciosas. Prestem bastante atenção nesse pequenino detalhe: silêncio.

– Mas nem uma musiquinha? Gosto de trabalhar com música… – questionou uma, vibrando os lábios após a pergunta. As demais sorriram concordes.

– Silêncio total, absoluto. Sei que isso pode ser muito difícil para as mais jovens, mas lembrem-se: nosso futuro e o futuro de seus filhos dependem disso. – explicou, meneando o dedo em riste, na direção da assembleia.

– Essa foi pra você viu? – disse a mãe da mais atrevida, cutucando-a com o cotovelo.

– Não, não foi uma indireta. Mas precisamos ser extremamente cartesianas quanto a tudo que aprendemos aqui. Agora, temos algo ainda mais importante: para nossa segurança e a segurança da ação, não devemos saber nossos nomes, de maneira alguma. Todos teremos um codinome, que pode ser um número, uma cor, uma cidade...

– Ah, isso não dá certo não, professor. Eu vi isso numa série de TV… Por que não gentílicos? – perguntou a aluna mais aplicada (e pedante), apenas para chamar atenção para si.

– Gentílicos? O que é isso? – perguntou, de imediato, a atrevida, levando um safanão da mãe. O professor sorriu e adiantou-se. Não tinham tempo a perder.

– Gentílico – disse ele, enfatizando a palavra, como se a grifasse – é o nome atribuído a uma pessoa de acordo com a sua naturalidade, origem. Quem nasce no Rio de Janeiro é carioca, esse é o seu gentílico.

– Ah, então, eu sou a Carioca! – disse a petulante, olhando para as demais, movimentando os ombros, embevecida.

– Hum… tá meu bem. – murmurou outra, com despeito. – Se você é a Carioca, eu sou a Paulista. – concluiu, como se entre elas houvesse uma competição velada.

– Mineira…

– Capixaba…

– Baiana!

– Friburguense...

E todas disseram seus codinomes, orgulhosamente e quase em uníssono, num sonoro e repreensível zunzunzum. Desnecessário seria citar todos os nomes, porque elas eram muitas, embora a vítima não soubesse disso, antes de dormir.

– Shh! – censurou o Professor, com o dedo à frente da boca. – Agora, eu peço a atenção de vocês. Muita atenção, por favor. Faz cerca de uma hora que ele dormiu, o que significa que está entrando no que chamamos de fase três do sono, também conhecida como “Sono Delta”, que é a fase mais profunda… está na hora meninas!

– Professor, Professor... – interrompeu uma delas, erguendo o braço, num semblante ansioso. – Ele está tossindo. Não será COVID?

– Impossível. – respondeu o Professor, após um pigarro, num sorriso incrédulo. – A série de coisas estranhas já devia ter acabado... – concluiu, pensativo, observando o silêncio, misto de angústia e compreensão, quebrado apenas pelo ronco do homem. – Não, não há perigo, definitivamente. Agora vão. Vão! Ficarei aqui para coordenar toda a ação!

E todas levantaram voo, batendo as asas com velocidade, descendo em rasantes do varão da cortina, da pá do ventilador parado, da porta do guarda roupa, do plafonier, na maçaneta da porta do quarto... de todos os lugares imagináveis, porém negligenciados, antes de se ter deitado. Elas vinham de todas as partes!

O homem estava com os braços erguidos, o lençol cobria-lhe completamente o abdômen, deixando o tórax a la vontê, onde a Mineira pousou. A Paulista sobrevoou duas vezes o rosto do rapaz, parecendo escolher o momento e a hora certa de atacar. A Baiana ganhou-lhe a testa, uma duas, três vezes, em rápidas e enérgicas abordagens. A Friburguense e a Capixaba pousaram em diferentes pontos do braço, permanecendo, calmamente, no recolhimento da seiva púrpura dos humanos, que lhes valia mais que todo o ouro da Espanha. Contudo, um erro, um diminuto e vulgar erro, se tornaria fatal: a Carioca, não resistindo, pousou nos lábios carnudos do homem, sendo sugada, para desespero do Professor, que assistia tudo a distância. A inflamada e instável Paulista perdeu o controle e sobrevoou histérica os ouvidos do rapaz, que acabou por golpear a testa e atingir a Baiana, a mais dedicada e técnica de todas. A partir daí foi uma sequência de golpes, que alcançaram a maioria: metade morreu, metade fugiu ferida, escondendo-se novamente na penumbra do quarto, mimetizando-se nas cores dos móveis ou em suas sombras. Foi um massacre. Um massacre! O homem, por fim, despertou e levantou-se, acendendo a luz, a fim de procurar os pernilongos, mosquitos ou muriçocas. Não importavam seus nomes ou codinomes: impossível seria torcer por eles (ou elas) com um balde de pipoca no colo.

O homem ficou vagando pelo quarto ainda por algum tempo, desorientado e sonolento. Era tarde, ele sabia, todas haviam fugido. No dia seguinte, seria mais precavido: eliminaria possíveis focos de reprodução, fecharia portas e janelas ao entardecer, compraria repelentes, queimaria incensos, faria orações… enfim, tudo o que estivesse em seu alcance. Quanto ao Professor, estava desapontado, observando a tudo, sem poder fazer exatamente nada. Estava convicto: seria muito mais fácil entrar e sair da Casa da Moeda da Espanha, do que escapar ileso de um ataque noturno à pele humana. Mas quem sabe numa próxima temporada?


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