Mal entendido
O carro estava ligado, o homem atrás do volante zapeava o celular enquanto aguardava a esposa, ouvindo em volume baixo uma estação qualquer no autorrádio. Consultou o relógio, impacientemente, mesmo havendo o marcador no aparelho eletrônico. Suspirou e voltou a se entreter com as manchetes divulgadas nas redes sociais. Não se aprofundava em nenhuma notícia, lia tão somente a chamada e deslizava o dedo pela tela. Suspirou novamente, com ansiedade. A mulher havia acabado de chegar, mal se sentado e fechado a porta, quando ele arrancou com o carro, rudemente.
– Caramba, vai dizer, hein? Que demora! – resmungou, jogando o aparelho celular de qualquer maneira em um dos porta-cacarecos do painel, pouco antes de engatar a primeira marcha. – O que você estava fazendo, afinal?
– Não interessa o que eu estava fazendo. – respondeu a mulher com o semblante fechado. – Você é quem vai dizer, que cabelo loiro é esse aqui, em cima do meu banco. – concluiu, erguendo o fio em sua direção, entre o polegar e o indicador.
– “Cabelo loiro"? Que cabelo loiro? E eu sei lá! Deve ser teu! – retrucou sem tirar os olhos da direção.
– E eu sou loira por acaso? – contra-argumentou a mulher, quase em retórica.
– Então, ele não é loiro... deve ser branco, ué! – refletiu em voz alta o motorista, franzindo os lábios em arrependimento, logo em seguida.
– Está me chamando de velha, é isso? Então, eu já estou velha pra você, e por isso está botando uma piriguetezinha loira pra andar no nosso carro?
– Meu amor, não é nada disso!
– Ah! Agora é meu amor, não é? – resmungou a esposa, com os olhos marejados.
– Agora não, sempre foi! Eu te amo, minha linda. Não tenho porque fazer uma bobagem dessas... – esgrimiu enquanto fazia trocas de marcha. Após um breve silêncio, a mulher fungou e tomou novamente a palavra.
– Olha, pode me deixar ali na frente mesmo. Vou resolver minhas coisas e te ligo depois, ok? – anunciou, encerrando o assunto. O homem reduziu a velocidade, sem retrucar, e encostou com o pisca alerta ligado, sob a placa com um grande “E" preto, cruzado duas vezes em vermelho.
– Se cuida, viu? Te amo. – recomendou ele, e se esticou para um beijo rápido e salgado. A jovem mulher tomou sua bolsa a tiracolo e abriu a porta para desembarcar.
– Eu também te amo. – retribuiu sem muita emoção na voz. Deu-lhe um sorriso amarelo, bateu a porta e seguiu pela calçada, desaparecendo entre as outras pessoas. O homem atrás do volante acompanhou-a com o olhar até onde pode, e arrancou novamente com o carro.
A cabeça estava a mil. Os acontecimentos cruzando a sua mente em flashes, tão rápidos e superficiais quanto os pedestres e as manchetes das redes sociais. Cerca de um minuto depois, parado em um semáforo, achou melhor ligar. “Deus, o que foi isso?”, murmurou consigo mesmo. Era urgente que falasse com ela, não poderia dar chance ao azar. Digitou os números decorados no aparelho e o pôs ao ouvido, no momento em que a luz verde acendeu.
A mulher, caminhando pela calçada, atendeu ao telefone. Seus olhos brilhavam e o sorriso vacilava. A respiração era curta e acelerada, um frêmito emocionado. “Oi”, disse ela, parando para ouvir o interlocutor nervoso ao outro lado da linha. Respondeu-lhe, num crescente, súbito e surpreendente interesse.
– E aí?
– Sentiu-se culpado. – respondeu num sorriso. – Você sabe, tenho um compromisso agora, mas... eu queria te ver! Depois vou ligar para me buscar. Enquanto isso, tomamos um chope. O que acha?
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