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Não estamos sós

Por George dos Santos Pacheco
25/10/23 - 09:11

“Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro.” (Friedrich Nietzsche)

A distinta e insólita reunião foi naquela boate abandonada no centro da cidade – aquela com fama de mal assombrada – num dia 31 de outubro. Que noite! Foi como um encontro da turma do colégio, com direito a bate-boca, casais improváveis, discussões políticas, fofoca, favores e erros jogados na cara – com a diferença de que a maioria dos convivas não era deste plano. Não mesmo.

Difícil de acreditar? Também acho. Contudo, do que podemos duvidar neste mundão de meu Deus, nos tempos em que vivemos? Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Era nisso que ele pensava, estalando os lábios num muxoxo, quando sentou-se ao bar, observando o salão lotado.

– E aí, brother, o que você manda? – perguntou o barman, numa dicção lenta e sinistra, no momento em que a introdução de Thriller tocou no mixer do Zé Maria, com todos aqueles arranjos eletrônicos herdados do synthpop. Alguém gritou “toca Raul!”, mas quase ninguém percebeu.

– Morcegão? – chamou um jovem frascário, de olhar displicente e sorriso debochado, cujo caminhar desviava das bruxinhas mais novas e atrevidas no meio do salão, imersas em volúpia e sobrenaturalidade, antes que o morto-vivo do bar pudesse ser respondido.

– Ora, se não é o Cachorro Doido! – sorriu o vampiro, esticando a mão para cumprimentar seu interlocutor e puxando-o para um abraço. As bruxinhas, ao fundo, nem tomaram conhecimento, balançando o esqueleto, rodeadas por uma horda de desejosos fantasmas. Aliás, nenhuma viva alma fazia ideia de que eram tantos. Havia o fantasma da enchente, o fantasma do trânsito ruim, o fantasma da vaga de estacionamento, o fantasma da Praça Getúlio Vargas, o fantasma do Hospital Raul Sertã, o fantasma do carnaval na Alberto Braune, o fantasma das ruas esburacadas, e muitos outros. Chega a dar arrepio. Estavam todos lá.

– Há quanto tempo! Está sumido, hein, irmão! – disse o outro, ao sentar-se ao balcão junto do amigo, sendo observados pelo atendente do bar, de olhar perdido e a face deteriorada.

– Ô, Já-morreu! Bota aí um Cuspe-de-Dragão para eu beber com meu brother! – pediu o vampiro, num tom bem humorado. “É pra já”, disse o morto-vivo, e saiu arrastando os pés.

– “Cuspe-de-Dragão”? Caipirinha de pitaya com vodka? Porra, o que aconteceu com aquele vampiro perigoso, terror das madrugadas de Nova Friburgo?

– Estou ficando “coroa”, véi. Descobri que tenho intolerância à hemoglobina. De lá para cá: bico seco. Mas e você? Como estão as coisas? – perguntou, não contendo o tique nervoso de passar a ponta da língua no canino esquerdo, no final das frases.

– Ah, eu entrei numa de depilação a laser (a mulherada se amarra nisso, hoje em dia), mas não está dando muito certo não. Toda lua cheia volta tudo como era antes. Puta que o pariu. – respondeu resignado, coçando os pelos que subiam pelo colarinho da camisa de malha preta com estampa dos “Caça-fantasmas”. – E resolvi fazer terapia, sabe... para tratar aquele meu problema de... de correr atrás de carro. Lembra? – concluiu num muxoxo soturno.

– Um brinde, então, a tudo aquilo que podemos mudar, velho amigo! – propôs o vampiro, num sorriso medonho, erguendo a taça suada e sendo correspondido, logo após o zumbi servir as bebidas sobre o balcão (quase perdendo a mão). – Quem é o penetra? – perguntou intrigado e franzindo o cenho, ao perceber um homem mais à frente, também sentado ao balcão do bar, quase esvaziando a garrafa de uma bebida qualquer, cabisbaixo e tristonho no meio daquela escuridão.

– Ih, irmão... – disse o lupino, num tom esganiçado, retraindo-se subitamente, após virarem o drink quase que de uma só talagada. Brás Cubas aproximou-se da conversa, mas permaneceu junto a eles, tetanizado feito uma múmia. – Aquele é o cara que avança o sinal vermelho, atravessa fora da faixa, joga lixo na rua, furta objetos do trabalho, vende o voto (mas reclama da corrupção)... – concluiu.

– Puta que pariu, é um monstro… – disse o vampiro, num esgar assombrado.

– Bota “monstro” nisso. – comentou o morto-vivo, de queixo caído, com a voz morosa e embargada. – Mas falem baixo. Ele pensa que está sozinho aqui... – recomendou por fim, fazendo uma concha com a mão.

– Não mesmo. – concordaram em uníssono, meneando a cabeça negativamente e estalando os lábios.


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