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Ninguém poderá fazer por mim

Por George dos Santos Pacheco
21/07/22 - 10:43

“Se você sente dor, você está vivo. Se você sente a dor das outras pessoas, você é um ser humano.” (Liev Tolstói)

“Patrão, o senhor não tem um trocado aí para me dar, não?”, disse o morador de rua ao aproximar-se. Usava apenas camisa de malha, calça jeans enxovalhada, e sandálias havaianas. De cabelos grandes e um tanto desgrenhados, barba por fazer bastante grisalha, tinha o olhar carregado de um ar lúgubre e macilento, os olhos perdidos num ponto qualquer abaixo de nós. Era um inverno como este: gélido e rascante, implacável. Eu havia estacionado o carro na Avenida Campesina, numa vaga pública difícil de encontrar, por volta das oito da noite. Tranquei a porta e ajeitei a touca na cabeça, quando percebi o homem se aproximando. “Lá vem esse cara pedir dinheiro”, pensei num suspiro incomodado, mas não houve como esquivar-me dele.

“O senhor não tem um trocado aí?”, repetiu, como se eu não tivesse ouvido da primeira vez. “Vai gastar tudo com cacha...”, pensei antes da resposta negativa, quando subitamente ele interrompeu meus pensamentos, como se os lesse, inclusive: “Eu não vou mentir para o senhor. Eu quero o dinheiro é para comprar cachaça mesmo, porque com esse frio, só com cachaça para conseguir dormir. Está vendo ali? Eu durmo ali.”, concluiu apontando para a beira do rio, um abrigo feito com papelões e jornais, alguns cobertores mal dobrados.

Puta que pariu, cara pálida. Quanta mesquinhez. Você não tem vergonha disso, não? Eu tenho. Senti o rosto ruborizar na hora, um constrangimento incrível e difícil de se esquivar. Franzi os lábios e, sacando a carteira, dei-lhe um pouco de dinheiro, sem saber o que dizer, mas exatamente o que pensar. Ele agradeceu, cabisbaixo e sem muita expressão. Lembro-me apenas de observá-lo se afastar, desejando-lhe boa noite e concluindo com “Deus te abençoe”.

Ainda estava envergonhado por haver pensado de maneira tão sórdida, sentia-me como se Papai do Céu tivesse colocado um asterisco à carmim em meu nome. Escoltado por um contingente de emoções, aquecido por cobertores, e bem alimentado, não dormi bem. Puta que pariu, cara pálida. Aquele senhor podia ter usado meia dúzia de alegações falsas para emocionar e me convencer, mas à queima roupa, ele foi rápido, seco e direto. Sincero.

Não me venha com chorumelas, nefando leitor. Não se trata de opção, ninguém em sã consciência escolhe viver na rua, em situações tão precárias e degradantes. Pensar e argumentar dessa maneira a fim de justificar a avareza é miopia política e social, quando não hipocrisia. A gente caminha todos os dias pelas calçadas fingindo não os ver, desvia o percurso e o olhar, como se fossem inconvenientes objetos integrados à paisagem. Mas eles estão lá. Eles estão aqui. E são homens feito nós.

Como se não bastasse, sentimo-nos na posição de julgá-los: “Ele vai usar para comprar cachaça”. E o que temos com isso? Quem somos nós para arrotar moralismos, dizer o que fazer ou o que não fazer? Além do mais, esquivamo-nos da nossa responsabilidade com o bem comum, justificando as mazelas da sociedade com a inércia do governo público ou dos sujeitos em si. A responsabilidade também é nossa, pois alimentamos esse sistema de crenças de sucessos questionáveis, essa malta iníqua, superficial e indiferente, individualista. Preocupamo-nos com uma guerra acontecendo a 10.686 quilômetros do Brasil, mas cagamos e andamos para as vítimas daqui. Hipócritas é o que somos.

Devo admitir que também não sei exatamente o que fazer com tudo isso, mas vá lá, reconhecer que há algo a se fazer já é alguma coisa, não é? Nessa época do ano eu sempre lembro do senhor de olhos tristes e me envergonho novamente por ter pensado daquela maneira – o que também é motivo para corar. Enfim, o que está feito, está feito. Contudo, naquela noite eu decidi que, na dúvida, farei apenas o que ninguém poderá fazer por mim: a minha parte.


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