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O bicho

Por George dos Santos Pacheco
20/11/24 - 11:11

"A perseverança é a mãe da boa sorte." (Miguel de Cervantes)

Cheguei a colocar o pé no calçamento. Estava para atravessar a rua quando me distraí com um ambulante na calçada, vendendo cabos de recarga de celular de sei lá quantos metros. Naquele momento eu pensei, estacando repentinamente e voltando o olhar em sua direção, na utilidade de algo assim. O ser humano que compra um troço desses conecta o aparelho na tomada da sala e o utiliza no quintal. Nem deveria ser chamado de cabo, isso aí é uma extensão mesmo.

Entretanto, trata-se de acessório. Fato é que os carros haviam parado antes da faixa para a travessia dos pedestres, exceto por um motociclista que passou em alta velocidade com uma caixa quadrada nas costas, tirando um "fino" de mim. Murmurei o nome de um animal entre os dentes, expirando fortemente o ar pelas narinas, as pernas bambas. Eu ainda me refazia do susto quando notei Meio Quilo, colega do Bar do Balboa, caminhando pela calçada com uma expressão descontraída e sorridente. Desisti da travessia e fui ao seu encontro.

— Ô, Meio Quilo! Que cara de bobo é essa? – perguntei, afável, esticando a mão para cumprimentá-lo.

— Rapaz… – disse ele, num sorriso, os olhos injetados de alegria. Atirou o cigarro ao chão e pisou-o ao mesmo tempo em que me apertava minha mão. – Ganhei no Bicho!

— Como é que é, cara? – perguntei, sustentando a conversa como se estivesse apoiado em uma bengala, já que havia compreendido muito bem o que o colega dissera.

— Ganhei no Bicho! – reiterou ele, controlando o tom de voz para competir com o locutor de uma loja sem ser demasiadamente ostensivo.

— Como é que foi isso? – perguntei cheio de curiosidade, olhando para os lados, porém. Apesar do processo de regularização, o Bicho ainda era uma contravenção penal.

— Cabra, eu tive um sonho… meu cachorro se perdia. Era um cachorro pequeno, mas o engraçado é que ele era preto, só que estava pintado de branco, bem à moda cacete, mesmo. Então, ele se perdia... e eu e meu pai ficávamos procurando o bicho pra tudo que é lado. O lugar era uma espécie de gramado, com muitos arbustos, poucas árvores. E nada de achar o cachorro: no lugar dele, apareceram coelhos: um, dois, três. Quatro coelhos. Mas cachorro que é bom, nada! – explicou sorrindo, com uma riqueza de detalhes impressionante.

— Aí você jogou no cachorro? – comentei, acompanhando meu raciocínio. Desviei para o lado, para evitar a trombada de um sujeito que passava todo atrapalhado, cheio de sacolas.

— Oxe! Eu busquei o cachorro o sonho inteiro e não achei, acredita mesmo que eu o encontraria no Bicho? – disse sorrindo e franzindo o cenho.

— Então... jogou no coelho? – arrisquei, mas como já deu para o leitor perceber, meu conhecimento sobre Bicho é bem limitado.

— Mais ou menos. Eu sou cobra criada, né? Apostei no cavalo… – respondeu erguendo o tom de voz novamente.

— Peraí, Meio Quilo. Você me contou o sonho direito? Porque eu não vi cavalo nenhum…

— Pachecão, jogar no Bicho é uma arte… não basta o palpite, tem que ser águia e interpretar os sinais corretamente. O cavalo representa entre muitas coisas, a figura masculina. No sonho era meu pai que me ajudava a procurar o cachorro; então joguei a primeira dezena do cavalo, pois meu pai é primeiro da linha de homens da minha família, por assim dizer. Completei o número com a quarta dezena de coelho, porque foram quatro os coelhos que encontrei no sonho. Meu amigo, deu a milhar inteira! Inteira!

— Caramba! Que sorte, Meio Quilo! – disse batendo em seu ombro, e novamente correndo o olhar ao redor. A sensação de estar sendo vigiado era enorme.

— Alto lá! Sorte, não: se eu não soubesse compreender o sonho, não ia ganhar porra nenhuma. – proclamou ele com o dedo em riste. – Agora, me dê licença que eu vou lá! Não conta para a rapaziada ainda, por favor; quero fazer isso pessoalmente! – afirmou o bem-aventurado colega, com a boca escancarada num sorriso, esticando nervosamente a mão para a despedida.

— Deixa comigo! Parabéns! – assegurei, antes de cumprimentá-lo e vê-lo partir pela calçada, enfiando as mãos no bolsos, cheio de satisfação. Cheguei até a imaginar os Bee-Gees cantando uma música alegre ao fundo enquanto ele se afastava, parecendo gingar de felicidade. "Ha, ha, ha, ha: Stayin' alive, Stayin' alive! Ha, ha, ha, ha: Stayin' aliiiiiiiive!".

Retornei ao meu itinerário original, para a devandita faixa de pedestres. Curioso como a vida tem dessas coisas, não acha? Temos palpites para as diversas situações que nos ocorrem diariamente, mas saber decifrar os sinais, ah, esse é o pulo do gato. Vê bem, se eu não tivesse me distraído com o camelô, havia atravessado a rua e provavelmente teria sido atropelado; ainda que não o fosse, não havia encontrado meu amigo, escutado sua história e tampouco chegado a essa conclusão.

Cruzei a rua com mais atenção desta vez, ainda que a mente se ocupasse em refletir sobre os sinais. Eles estão por toda a parte, é verdade, embora muitas vezes não os notemos. Em uma conversa descontraída, em um momento de distração, num esbarrão em alguém atrapalhado com sacolas de mercado, quiçá numa crônica semanal de um portal de notícias.


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