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O fim da humanidade

Por George dos Santos Pacheco
31/01/24 - 09:19

“De todos os infortúnios que afligem a humanidade, o mais amargo é que temos de ter consciência de muito e controle de nada.” (Heródoto)

A que ponto chegamos! A que ponto chegamos, meu senhor. Grande parte dos nossos compromissos cotidianos, o que há de mais elementar e prosaico dos serviços, no mundo contemporâneo, se resolve (também ou tão somente) por meio eletrônico. Pagamentos de contas, consultas a documentos em sistemas do governo, preenchimento de formulários, emissão de notas fiscais, realização de compras online, exames de saúde e até atendimento médico por telemedicina. Não duvido que possa haver algum tipo de audiência com cartomantes, inclusive. E isso assim, ó, na velocidade da franquia de sua conexão.

O que, entretanto, parece facilitar a prestação de misteres à sociedade, marca uma vez mais, a vergonhosa particularidade excludente dela mesma. Rudíssima e irrefutável prova disso é o caso das pessoas que, por motivos diversos, estão alijadas do processo de inovação tecnológica e deixam de ter acesso a um sem número de informações, direitos e benefícios. Parece até o cenário de um mundo distópico, dominado e oprimido pelas máquinas, mas é aqui e agora, o futuro que vivemos.

Em frente à tela do computador, tento autenticar um documento indispensável para a conclusão de uma tarefa do escritório. Eis que acessado o endereço eletrônico, digitados inúmeros campos e códigos, o sistema quer saber se “sou humano”. Ora, terráqueo, isso não é o cúmulo do absurdo? Eu tendo que provar para um aparelho que sou humano(!) a fim de prosseguir com a prestação de um serviço que não tem nada de extraordinário.

Cliquei na caixinha com a resposta e a página recarregou. Putzgrila. Precisei incluir todos os dados novamente e selecionar outra vez que “sou humano”. Sou humano, cara! Olha aqui, não sou de ferro! E tome-lhe enter – como se isso fosse adiantar meu atendimento. O sistema exibiu então uma janela com diversas imagens – que só os humanos deveriam reconhecer – como numa última e misteriosa charada da esfinge, antes de devorar-me. “Selecione as imagens com bicicletas”. Ora, isso aí é molezinha. Clico em uma, duas, três. “Como assim, está errado?”, pensei, estupefato, apoiando o queixo nas mãos. Então, eu não sei mais o que é uma magrela? Faça-me o favor.

“Selecione as imagens com pessoas felizes”. Como é que é? O questionamento não está demasiadamente existencialista, não? Errado, de novo. Ora essa. Carros, escadas, políticos honestos, ônibus, heróis, senso de justiça... puta que o pariu, eu não acerto uma. Definitivamente, não sou humano. E o pior: não foi uma unidade de homo sapiens quem atestou isso, mas um robô, um desditoso sistema de banco de dados. É o fim da humanidade!

Opa, peraí, caceta. De repente, dei-me conta de que a culpa não é das inteligências artificiais, das máquinas, transistores, resistores ou capacitores eletrolíticos. Perdemos nossa humanidade há muito tempo, em qualquer lugar por aí, quando deixamos de nos sensibilizar com a dor dos outros, com a ostensiva corrupção das instituições, dos círculos sociais e antissociais, quando evitamos a dissonância cognitiva para justificar nossa imanente superficialidade. Nada de extraordinário, não é? A tecnologia apenas jogou essas e outras mazelas em nossa cara. As redes sociais que o digam.

Vê bem, moderníssimo leitor. A tarefa do escritório é o menor dos nossos problemas. Enquanto aquele documento jaz incólume sobre a mesa e a tela do computador questiona minha humanidade, suspiro, ligeiramente pesaroso. Levanto-me, esfregando os olhos. Preciso de um café. Quem sabe não desperto de um pesadelo futurista a la Cameron e tudo volta a ser como era antes?


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