O homem da caneta de ouro
“A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos.” (Erasmo de Roterdã)
Jaime Bon, o agente secreto friburguense, recuperava-se de um surto psicótico, pouco tempo após ter sido injustamente dispensado de suas funções no serviço de inteligência. Foram dias e dias carimbando documentos inúteis naquela salinha cheirando a mofo, no prédio em frente a Prefeitura. Ora, todos tratavam-no bem, seu ordenado era bom, a rotina de horários era excelente, mas… sentia-se injustiçado. Mais que isso: sentia-se subaproveitado, com tantos e tantos talentos. Por isso, precisava urgentemente recuperar seu prestígio e o posto de galã e herói, dos quais muito se orgulhava.
Nesta manhã, ausentara-se de seu quarto para atendimento com um dos psiquiatras da clínica, Doutor Scaramanga, o homem da caneta de ouro. Tinha mais ou menos a mesma altura de Jaime, barba bem feita, cabelos penteados para trás, costumava usar um blazer branco impecável. O olhar era firme e autoritário. Impávido colosso.
– Sente-se... – disse hesitante o médico, sentado à mesa com a cabeça baixa, a caneta dourada apontando para alguma coisa numa folha de papel.
– Bon, Jaime Bon. – completou-o ao perceber a dúvida. Estavam numa salinha simples, piso de tacos de madeira, mobiliário modesto, mas de bom gosto, suficiente para atender aos pacientes.
– Eu sei perfeitamente quem você é. – afirmou, erguendo o olhar. – Err… eu estava disposto a sugerir sua alta, você é tranquilo, observador, responde bem ao tratamento. Contudo, fatos novos me indicam justamente o contrário. Entende do que estou falando, não é? – explicou ele, abandonando a caneta sobre o tampo e recostando-se na cadeira.
– Fatos novos? – perguntou numa carantonha. – Talvez esteja falando das obras de drenagem, no centro da cidade. Já vão acabar? Ou seria sobre a festa de São João? Começa hoje, não é? – replicou, evasivo, apenas para provocar. O médico expeliu o ar pelas narinas e debruçou-se novamente sobre a mesa. Suspirou, enfastiado.
– “Senhor Diretor, Deve ser de conhecimento de V.Sa. que há muitos anos alienígenas visitam Nova Friburgo e se infiltram entre nós. A pedido de M, realizei um exame minucioso e constatei que o pátio da clínica trata-se de local ideal para o pouso de suas naves interplanetárias. Como ainda não se sabe ao certo suas intenções, convém que estreitemos nossos laços, e a cessão para o pouso adequado de suas naves nos colocará na mais alta conta dos extraterrestres. RTT, J.B.” – concluiu Scaramanga, encarando-o outra vez. Agente secreto? Extraterrestres? É uma espécie de brincadeira ou acredita nisso mesmo?
– Ah, Doutor Scaramanga... – disse Jaime, levantando-se. – O que o senhor considera maior contrassenso? Criar um local de pouso para discos voadores ou vagas de estacionamento no centro da cidade? Transporte público de qualidade, ahn? O que acha? – concluiu, com eloquência, fazendo a volta na mesa e seguindo até o blazer pendurado num cabideiro próximo.
– Foi o que eu imaginei... – disse o psiquiatra, puxando o telefone e teclando alguns números, enquanto Bon vestia o casaco branco e o abotoava. – Sou eu. Por favor, venham buscá-lo. – concluiu com ar severo e encerrou a ligação.
– Foi o que eu imaginei... – repetiu Jaime Bon, arremedando seu jeito de falar, modulando sua expressão, tornando o olhar firme e autoritário... estava perfeito. Scaramanga o encarava atônito, após bater o telefone, reconhecendo-se em Jaime Bon, que agora caminhava implacável em sua direção.
– O que pensa que está fazendo? – gritou o psiquiatra, ao levar um inesperado tapa. Os olhos febris marejavam de raiva, os cabelos desgrenharam pelo impacto da mão do magnífico e surpreendente Jaime Bon. Levantou-se de imediato, aproximando-se do paciente. Ou do médico?
– O que pensa que está fazendo? – repetiu Jaime, tornando a mimetizar a dicção e ritmo das palavras do médico, no momento em que dois enfermeiros irromperam a porta. – Levem esse louco daqui, agora! – determinou e por um momento os homens titubearam. – Andem logo com isso! – acrescentou, com autoridade, desviando do verdadeiro Scaramanga a persegui-lo pelo consultório, com a boca espumando de raiva. Insultos e xingamentos descontrolados ecoavam pela sala e talvez fossem ouvidos em toda a clínica. Finalmente os enfermeiros agarraram o médico pelo braço, arrastando-o de vez sala afora, enquanto este se debatia e tentava inutilmente se desvencilhar.
“Vocês não veem? Ele é quem é o louco! Ele! Eu sou Scaramanga, Doutor Scaramanga! Soltem-me!”, dizia ele aos berros, em vão. Já na altura da porta, fitou Jaime com olhos tenebrosos, jurando-lhe vingança. “Você me paga por isso! Você vai me pagar, ouviu bem?”
– Por mim, você passa o resto de seus dias aqui dentro. Não tem condições nenhuma de conviver em sociedade… – disse Jaime, calma e solenemente, seguindo até a mesa, com certa erudição. Os gritos distanciavam-se pelo corredor, até não ser possível distinguir as vozes, os protestos… no ar apenas o eco mal assombrado da raiva.
Suspirou, apoiado com as mãos no tampo. O embuste seria rapidamente descoberto, é claro e evidente, ele precisava ser breve. Inspirou o ar fortemente e agiu. Recolheu, com movimentos céleres, a carta sobre a mesa, a chave do carro, guardando-os no blazer. Antes de pegar a pasta de documentos e finalmente sair, porém, lembrou-se da caneta dourada. Era um detalhe importante – e um espólio de guerra.
Os minutos eram preciosos, valiosos, finitos… não podia desperdiçá-los em vão. O coração batia acelerado, o peito arfava, tentava controlar-se, subjugar suas emoções. Fora treinado para isso, afinal. Nos corredores, passou por funcionários, enfermeiros, porteiros… ninguém, incrivelmente, notou a farsa. Alcançou o pátio exterior, retirando a chave do bolso, com a mão trêmula. Em seguida, entrou no carro e deu a partida, arrancando imediatamente com o veículo. No retrovisor, a malta de enfermeiros corria inútil e desesperadamente atrás do carro... “Tarde demais, alienados!”, pensou ele e sorriu nervosamente. Quem define, afinal, a fronteira entre a loucura e a lucidez? Ele não era louco. Não, não, não. Era, novamente, o prestigioso e magnífico Jaime Bon, herói e galã. Aliás, sentia-se capaz de ser quem bem entendesse: o médico, o padre, o motorista do ônibus e até mesmo o prefeito. Nunca se sabe. Estava satisfeito, contudo, em ser apenas Bon, Jaime Bon. O improvável e boquirroto agente secreto friburguense.
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