O nome das coisas
“Há pessoas que se deixam levar mais pelos nomes das coisas que pelas próprias coisas.” (Erasmo de Rotterdam)
Esses dias um garotinho conversava com o avô na praça, sentados no batente do chafariz do centro de turismo. O Cristo de braços abertos na fachada da Igreja Matriz desde 1900, os observava à distância, em silêncio, mimetizado na arquitetura urbana da cidade, negligenciado na rotina diária dos friburguenses.
– Vovô... quem deu nome às coisas? – perguntou o garotinho ao lamber um naco do sorvete daquela famosa lanchonete do palhaço.
– Ah, meu filho... eu acho que foi Deus. Deve ter sido Deus que pôs o nome nas coisas. – respondeu o senhor, ajeitando o boné e virando os olhos pra cima, como se buscasse a resposta num lugar qualquer da mente.
– Ah, não foi, não, vô. O padre falou semana passada na missa que Deus é perfeito. Não pode ter sido Deus que botou nome nas coisas. – objetou o garoto, mordendo já a casquinha do sorvete, lambuzando os lábios com o creme. Crianças tem um raciocínio um tanto singular para a realidade e responder seus questionamentos pode não ser uma tarefa tão fácil como pode parecer.
– E por que você diz isso? – perguntou o avô, cruzando os braços por cima da barriga protusa e virando o rosto uma oitava a direita.
– Tá tudo errado, vô. As coisas não se chamam pelo que realmente são. O martelo, por exemplo. Ele por acaso “marta”? O martelo bate. Então ele deveria se chamar “batelo", ou então “batedor". – argumentou num tom quase intelectual, rodando os pés para os lados, sobre os calcanhares.
– Faz sentido, faz sentido. – murmurou o avô, deixando as ideias e a vista se perderem nas pessoas que passavam pela praça.
– Os pratos e copos. Deveriam ser “comedores" e “bebedores". Não é o que se faz neles? – continuou o menino, em sua infantil eloquência. Tem tino para a política, esse garoto, esperem alguns anos pra ver.
– Faz sentido, faz sentido... – repetiu o velho, torcendo o pescoço para uma moça que passava com shorts curto e blusinha que deixava a barriga de fora. O garoto percebeu.
– Mamãe chama elas de piriguetes. Mas eu acho que o nome deve ser outro. O que o senhor acha, vô? – comentou após morder o último pedaço da casquinha, os dedos e boca lambuzados, um restolho de guardanapo completamente o empapado e já inservível.
– Eu acho que o nome disso é “exagero". – respondeu o velho, sorrindo e acompanhando o caminhar da moça, saboreando cada fonema da palavra.
– Ela diz também que essas moças vão comprar o short de um tamanho, mas a loja vende menor.
– O nome disso é “propaganda enganosa". É quando uma alguém anuncia uma coisa e não cumpre, de propósito. – explicou o senhor, descruzando os braços e conferindo o relógio. O menino abandonou o guardanapo e limpou as mãos na camisa.
– Ué, vô... hoje de manhã a vovó disse que o senhor prometeu e não cumpriu.
– Como é que é? – empertigou-se o velho, encarando o neto.
– Não é a mesma coisa? – continuou o menino, franzindo o cenho.
– Não, não, não! – respondeu o avô, fechando a cara e meneando negativamente o dedo em riste. – Isso aí é mentira!
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