O povo acredita em cada uma
“As pequenas mentiras fazem o grande mentiroso.” (William Shakespeare)
Foi no Bar do Balboa, na Augusto Cardoso (uma transversal da Alberto Braune), bem no centro da cidade. Naqueles dias um circo estava visitando Nova Friburgo, ainda que os circos estivessem um tanto fora de moda. Deu-se então que, lá pelas quatro da tarde (quem conta é o próprio Balboa), estando o bar vazio, por ironia do destino, entrou pisando duro, ereto nas pernas traseiras, um baita de um leão. O dono do bar, lavando os copos americanos e de costas para o balcão, só o percebeu quando o felino bufou, apoiando o cotovelo na bancada.
– Ô, seu moço! Dá-me aquela que matou o guarda... – pediu ele, fazendo bambear as pernas do dileto comerciante, ao dar-se conta do inusitado cliente, apoiando-se apavoradamente na pia. Pegou o litro de Velho Barreiro, trêmulo, e lascou três generosos dedos no copo americano, deslizando-o no balcão. O leão pegou e virou a maldita de uma só vez, seguido de um “argh” ressonante. Balboa não falou nada e permaneceu encarando o bicho, que bateu o copo no balcão e levou a mão à cintura, a pata traseira cruzada na altura do tornozelo, a cauda ziguezagueando impaciente. – O que é que “cê” tem aí para comer?
– Tem ovo cozido, joelho de porco, calabresa acebolada, sobrecoxa de frango… – respondeu Balboa, com aquele permanente olhar tristonho, correndo os olhos pelos quitutes, após correr a portinhola do balcão térmico.
– Eita! Dá uma porção de calabresa, por favor. Não precisa de palito não, pois tenho dificuldade de pegar. E bota mais outra, aí! – pediu num rugido e continuou – Fugi do circo, meu amigo. Puta que o pariu. A gente dorme mal, se alimenta mal, fica fazendo graça pros outros e ainda leva umas chicotadas de vez em quando. Aquilo não é vida não! Você sabe o que é isso? – concluiu e virou outro trago da bebida, abandonando o copo e limpando o focinho com as costas da pata, mirando o movimento da rua.
– Não deve ser muito diferente do que eu vivia com a minha ex-esposa. – comentou Balboa, com o canto da boca inclinado, num murmúrio incomodado. Serviu em seguida o prato de tira-gosto, que o leão abocanhou com avidez.
– Ah, deve ser muito pior. Eu garanto! Nem salário eu tinha. Nem salário! – insistiu ele, com a boca cheia, meneando o dedo em riste, movendo o olhar para Balboa. Alguns clientes quando chegavam no batente da entrada e percebiam o felino, davam meia volta, contorcendo o rosto em esgares assustados. – Por falar nisso, cara, eu tô sem nenhum troco aqui. Não tem como você me arrumar alguma coisa aí, não? Faz um tempo que não vejo meus filhos e Madagascar é longe pra cacete… – disse o leão, com um ar melancólico. Balboa se compadeceu e já abria a gaveta do caixa, quando uma viatura policial parou bem em frente ao bar, com um silencioso giroscópio a lançar luzes.
– “Teje” preso, meliante! – gritou um policial ao entrar no estabelecimento com a arma em punho, ao que o leão ergueu as patas para cima.
– Eu sou inocente! – declarou o leão, num arfar indignado. Algumas pessoas começavam a se aglomerar na calçada (o povo adora uma confusão).
– Vê se cala a boca e entra na caçamba, bora! – determinou o segundo policial ao algemar o felino e puxá-lo pela perna dianteira, dando-lhe um safanão na cabeça com a mão livre.
– Peraí, cara… o bicho estava passando por maus bocados no circo… – tentou apaziguar Balboa comovido.
– Circo? Que circo? Esse aí é o maior vigarista dos últimos tempos, estelionatário da pior espécie. Nem leão ele é, olha aí… – disse o outro policial, guardando a arma no coldre e removendo-lhe a juba falsa com um novo pescoção. – Sente o bafo. Não passa de uma onça parda que apareceu lá no Parque dos Três Picos e vem dando golpe em um monte de gente boa por aí. Fez promessas de campanha política, arrancou uma grana preta de uma senhora fazendo-se de Johnny Depp apaixonado e esses dias meteu que era um astronauta russo com dificuldades em voltar para a Terra! – concluiu, puxando-o firmemente pela pata presa atrás das costas. – Bora, seu vagabundo! Anda!
– Ei! Cadê os direitos humanos? – reclamou o leão (onça), tropeçando já na saída do bar.
– Que direitos humanos, cara? Tá maluco? – repreendeu o policial, firmando o braço ante as sacudidelas do animal.
– Então… então cadê os direitos dos animais? Você não pode me bater assim não, hein? – argumentou o meliante ao entrar no camburão. – Eu vou te denunciar, seu opressor! Você vai ver! – ouviu ainda Balboa, antes da viatura arrancar, agora sim, com giroscópio e sirene fazendo estardalhaço.
“Porra, Balboa. O cara entra no bar dizendo-se leão que fugiu do circo e você ainda acredita?”, comentou o colega ao ouvir a história, virando um mesmo copo de Velho Barreiro que a onça havia bebido. “Pô, até você acreditaria. Parecia um leão mesmo, só você vendo...”, defendeu-se o dono do bar. “Além do mais, pense numa lábia. O sujeito era papo-firme”. Ora, “papo-firme” tem um monte por aí. Promessa de campanha? Johnny Depp apaixonado? Astronauta russo? Leão que fugiu do circo? O povo acredita em cada uma que eu vou te contar.
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