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Pequenas doses diárias de felicidade

Por George dos Santos Pacheco
07/08/24 - 08:59

"Meu querido, meu velho, meu amigo!" (Roberto Carlos)

Passei o café pouco depois da água levantar fervura, em um coador posicionado diretamente na xícara de porcelana. Despejei a água em movimentos circulares no sentido anti-horário, apoiei o canecão no fogão e, em seguida, fiz a troca do suporte para a xícara de Dona Maria, um hábito que adotamos há bastante tempo; assim, a bebida é servida quente e fresquinha, diferente de quando se guarda em garrafas térmicas ou na jarra da cafeteira. É um costume, nada mais que isso. Um daqueles costumes que moldam comportamentos, como o cachimbo que deixa a boca torta, não concorda?

Peguei as xícaras e segui para a varanda, onde a mulher aguardava, com um livro em mãos. “Ficou bom?”, perguntei como de praxe, e ela retribui com um sorriso agradecido. Sorvi a bebida em pequenos goles, soprando levemente para não queimar os lábios. Deixei a cerâmica ainda pela metade sobre uma banqueta e servi-me da minha leitura da ocasião: Quincas Borba. Já pensou, cara pálida, ganhar uma valiosíssima herança, sem esperar, e ver toda sua vida se transformar por causa disso? Quem nos dera! Acontece, porém, mais frequentemente do que você imagina.

Página cinquenta e oito: “Tomaram em silêncio o café; depois passaram à sala. Rubião desfazia-se em obséquios, mas preocupado…”. Não consegui concluir o parágrafo, por mais atenção que a ele depositasse, pois meu filho mais novo aproximou-se murmurando qualquer coisa, os cabelos cortados feito os de um curumim, a expressão travessa e altiva. Levantei os olhos, o garotinho tinha a bermuda vestida ao contrário, e as sandálias trocadas.

— Ô, meu filho! Mas o que é isso?! – exclamei, fechando o livro e ajudando-o a se arrumar, à sua revelia.

— Ah, paiê… – murmurou o menininho com cara de zangado, após ganhar um beijo na testa. Logo em seguida sorriu, voltando em disparada para o interior da casa.

Aproveitei para dar mais uma bicada no café, suspirei e olhei Dona Maria, com os olhos marejados. E já são tantos anos, tantos e tantos anos, que apenas pelo meu semblante, ela já sabia do que se tratava. Sim, sabia. Suspirei mais uma vez e tornei a pegar o livro. Qual era o trecho, mesmo? Não houve tempo de ao menos correr o dedo pela página a fim de encontrá-lo, pois na esteira do caçula surgia meu filho mais velho, a cabeça loirinha de cabelos finos, arrastando os pés descalços no chão, um carrinho de brinquedo nas mãos, balbuciando coisas ininteligíveis. Soltei o livro outra vez.

— Fala o que você quer, meu filho! – orientei, e ele continuava gesticulando e formulando frases estranhas.

— Que-cê-quer, pai! Que-cê-quer, pai! – insistia ele. Não pude conter o sorriso e as lágrimas. Peguei o carrinho de suas mãos e ajeitei uma rodinha. Beijei-o, igualmente ao menor, ele agradeceu e abandonou displicentemente o brinquedo, correndo para o quintal, chutando uma bola surrada com o irmão.

Olhei novamente para a mulher, desperta subitamente de sua leitura, num raro momento de intervalo entre tantos compromissos, sob um valoroso sol de inverno. Então, ela esticou a mão e segurou a minha com força, fazendo as lágrimas brotaram ainda mais. Limpei o rosto com o dorso da outra mão. A verdade, meu senhor, é que todas essas coisas aconteceram faz muito tempo, mas repetiam-se a frequentemente em minha cabeça, num sorriso único que jamais retornaria, nos chorinhos de bebês, nas roupinhas de recém-nascidos, nas noites em claro, no afago nos cabelos e até mesmo nos pitos necessários e desnecessários.

E assim, diante de mim, eu percebia passado, presente e futuro caminhando juntos, como se fossem irmãos; crianças, jovens e adultos. Os meninos com suas travessuras inocentes, aprendendo a formar as primeiras palavras; os rapazes adolescentes lidando com seus dramas e amores; e os adultos partindo para suas jornadas, também criando lares, assumindo responsabilidades e desfrutando de raros momentos de pausa em meio a tantos afazeres.

Às vezes é assim, nostálgico leitor, nessas tardes tão velozes e eu me lembro de mim mesmo, exatamente como eles. No colo do meu pai, passeando de mãos dadas com ele, ouvindo seus conselhos e piadas; eu ainda garoto, murmurando coisas indecifráveis, reclamando eventualmente sem motivo, chutando uma bola surrada com meu irmão. Por fim, reconheço-me igualmente na figura do meu pai. Ah, terráqueo. Quanta saudade!

Nesses dias, as lágrimas se fazem ainda mais intensas ao perceber, que tanto os filhos e quanto os pais, escorrem entre os dedos, e não há muito que possamos fazer a respeito. O que nos resta é apenas ser o melhor que pudermos e fazer disso um hábito, um costume que nos entorte a boca e um dia nos dê orgulho e a satisfação do dever cumprido. Quem nos dera, terráqueo (quem dos dera!) perceber isso o quanto antes, a fim de saborear essas pequenas doses diárias de felicidade, ainda quentes e fresquinhas.

Ah, quanta saudade! Já lhe aconteceu de ganhar uma valiosíssima herança, sem esperar, e ver toda sua vida mudar por conta disso? Acontece mais frequentemente do que você imagina.


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