Por muito pouco
“A cada um só conto a história que lhe pertence...” (C.S. Lewis)
Para começar, calha entender que não sou desses tipos que ficam por aí ouvindo a conversa alheia a esmo. Hum, hum. Não sou, não. É bem verdade que confessei recentemente o famigerado feito por aqui, porém, garanto ao mais crítico leitor, que jamais foi de propósito, com o descarado fito de apropriação de tão inusitadas histórias que permeiam nosso diário. E olhe que tal recurso é muito bem defendido por ninguém menos que Sérgio Porto, o nosso ilustre Ponte Preta. Acontece, fazer o quê. Vocês compreendem, não?
Se entretanto, Mohammed não vai a montanha, a montanha vem a Mohammed. Vê bem, indiscreto terráqueo. As histórias estão em todo lugar. A quermesse de São João voltava à praça depois dessa confusão toda de perdigotos, protocolos de higiene, etc. et al.. Dona Maria e os garotos se ausentaram por intermináveis instantes para comprarem alguma espécie de guloseima, festivos crepes, pastéis, cachorros quentes, batatas em cones, esferas ou cubos, pés de moleque, enfim, essas coisas que a gente sempre encontra nesses mafuás. “Compra qualquer coisa pra mim também!”, pedi num sorriso. Foi exatamente nessa ocasião que passou por mim um camarada meio atarracado, formas opulentas, trajado com uma jaqueta preta, touca de lã na cabeça. “Peixoto!”, disse o sujeito, ao que eu acenei automaticamente com a cabeça, tomado de um ligeiro desconforto, o cenho franzido.
O motivo do meu incômodo? Eu poderia pensar que ele simplesmente havia me confundido com alguém, até porque eu não o conhecia. O caso é que a confusão era com o meu nome e não comigo. Cara pálida, você pode até achar isso esnobe ou algum outro adjetivo de calão mais baixo, mas é o tipo de coisa que me inquieta frequentemente: quando abreviam meu nome ou o confundem com coisa parecida (ou nem tanto): Pasquale, Pazetto, Pessoa, Peixoto… até de Pafúncio já me chamaram. Acontece, fazer o quê.
O homem não se deu por satisfeito e, após alguns segundos, se aproximou e parou ao meu lado, as mãos metidas nos bolsos do casaco, a respiração condensando naquele início de noite.
– Tá frio, hein! – comentou com ar de riso, apenas para puxar papo. A música tocava alto, pisadinhas, forrós universitários, técnicos e não sei mais quantos gêneros estudantis. Tá bom. Pelo menos não era a Carnaval e ninguém havia passado a mão em minha bunda.
– Ah, com esse céu limpo, frio é coisa certa. – respondi, sem encará-lo, dando continuidade. Perdi Dona Maria e os garotos de vista, no meio dos circunstantes que se aglomeravam na praça e em torno das barraquinhas.
– Carlos Henrique… – disse ele, estendendo a mão, na pronúncia um sonoro “casenrique”. Uma garotinha que passava com a família esbarrou em seu cotovelo, fazendo-o movimentar o braço levemente para vante. “Mar-ce-la!”, chamou a atenção aquele que deduzi ser o pai, num tom de voz assertivo, porém carinhoso.
– Pacheco… – respondi, apertando sua mão, aproveitando para sutilmente corrigi-lo quanto a minha identidade. Um bêbado dançava com grande entusiasmo à nossa frente, imitando passos do Michael Jackson e o escambau.
– Gostei do seu último texto. – comentou Carlos Henrique, metendo a mão no bolso novamente, olhando para frente, sem me encarar. “Meu texto mais recente, por favor.”, pensei. Não gosto da palavra “último”.
– Obrigado pela leitura! – agradeci, virando-me para ele, surpreso. Onde estávamos era possível ter um bom panorama da praça e olhei em torno a fim de procurar minha família. O cheiro que evolava no ar apetecia e o estômago roncava.
– Sabe, eu não gosto muito de ler não, acho chato… – confessou, com um jeito encabulado, virando-se na minha direção também. Seu olhar desviou para algum ponto por cima do meu ombro direito e depois voltou a mim.
– Olha… agradeço pela sua sinceridade. – interrompi-o, deixando cair meu semblante.
– Mas gosto dos seus textos no site, são curtinhos, bem humorados, críticos. Gosto deles, de verdade! – retomou ele, corando e aumentando o tom de voz. Uma dessas músicas coqueluches começou a tocar numa barraquinha próxima, competindo com outras tantas barracas, uma balbúrdia de sons que atrapalhava o entendimento de qualquer conversa e até do próprio pensamento.
– Valeu! – agradeci sem muita exaltação, aumentando também a minha voz.
– Você podia contar minha história… – afirmou Carlos Henrique, de súbito, e foi então que compreendi todo esse elogioso acessório.
– Fala-me mais ou menos do que se trata! – incentivei, num sorriso. O cara errou meu nome, não curte ler, mas é meu leitor, não é, cara pálida? Ainda que eventualmente – e isso merece ser reconhecido. Viva São João!
– Então... você não vai acreditar! É minha ex-namorada. Ex-noiva, aliás… por muito pouco não casamos. Pacheco, ela está em todo o lugar. Deve estar aqui, inclusive... – explanou, arqueando as sobrancelhas e correndo o olhar em torno, modulando a voz conforme o volume das músicas. “Esse cheiro é de quê? Crepe ou pastel?”.
– Como assim? Ela te segue? – perguntei, intrigado. Senti o estômago roncar outra vez. Cadê Dona Maria?
– Exatamente! Ela está sempre me seguindo, mas a coisa beira o absurdo. Ela começou circulando pela minha rua, nos horários em que eu voltava do trabalho; arranjou um emprego no caixa de um mercado perto de casa; me chamou para corridas de táxi… e por último, pasme, encontrei ela no motel. No motel! – enumerou Carlos Henrique, para minha surpresa, os olhos brilhando. O bêbado girou na ponta dos pés e depois improvisou um baita de um moonwalker, arrancando aplausos da galera.
– Como é que é? – perguntei sobressaltado. Não entendi essa parte. Alguns adolescentes conversavam perto de nós. “A professora passou o resumo de um capítulo inteiro do livro para a prova. Aí eu fiquei pistola...”. Também não entendi essa parte.
– Ela era uma funcionária, camareira, sei lá que porra que ela era… putzgrila. Estragou meu encontro. – continuou, baixando o olhar.
– Mas como ela poderia saber que… – perguntei, a voz abafada por um estridente locutor. Dona Maria vinha caminhando com os garotos em nossa direção. Ufa!
– Não sei. Eu não faço ideia, mas acontece. Acontece demais. Ela deve estar aqui, com certeza está… – disse erguendo novamente o olhar, parecendo... nutrir uma expectativa de encontrá-la. Sim. Mais que isso: esperança. Franzi o cenho novamente, e ele pareceu ler meus pensamentos. – Err… a culpa é minha. De vez em quando a gente... ah, você sabe. É aquela velha história da “figurinha repetida”. – concluiu Carlos Henrique, num sorriso amarelo. Então era esse o motivo para ele procurar a ex com tanto interesse naquela animada quermesse de São João.
– Interessante a sua história… Amigo, vou ter que ir agora, ok? – afirmei, esticando a mão para a despedida, aproveitando o momento que ele parou para respirar. Minha família aguardava ao largo, com os quitutes nas mãos, circundada por pessoas indo e voltando, famílias com seus filhos, casais jovens e maduros, além de tanta gente solitária.
– Ah sim, claro. Desculpe pela inconveniência. Conta lá minha história, Peixoto! Ela vai ficar maluca… Não esquece de colocar o meu nome, hein? – respondeu ele, cumprimentando-me e se afastando. Peixoto? Putzgrila.
– Quem era? – perguntou Dona Maria, esticando o lanche para que eu o mordesse.
– Ah, aquele? É o Carlos Alberto. O que é isso aí, crepe? – expliquei, perguntando em seguida, as sobrancelhas unidas, a voz embargada pela boca cheia. Se Mohammed não vai a montanha, a montanha vem a Mohammed. Viva São João!
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