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Tarde demais

Por George dos Santos Pacheco
17/04/24 - 08:15

“Você tem um carro rápido. Eu quero uma passagem pra qualquer lugar...” (Tracy Chapman)

Passava da meia noite quando decidiu voltar, apesar dos insistentes pedidos da namorada para que ficasse. Levantar cedo às segundas é sempre mais forçoso, contudo, seria mais franco admitir que se sentia muito desconfortável em pousar, assim, em sua casa. Tendo sido criado numa família extremamente ortodoxa e tradicional, tal atitude constituiria uma extravagância desnecessária – além de um grave insulto à reputação da moça. Não lhes era conveniente. Absolutamente.

Acelerava o carro pela subida do Catarcione, passando por aquele condomínio do Heródoto, suspirando de saudade. Estava escuro, a maioria dos postes tinha lâmpadas queimadas. Fizera, realmente, bem em ter vindo embora? Os amigos o chamavam de antiquado; os pais da jovem não faziam questão alguma. Poxa, vida. Devia ter ficado, pensou, pesaroso, mas era, literalmente, muito tarde.

O celular vibrou e tocou no porta-objetos do painel, o tom clássico dos aparelhos telefônicos antigos. Antigo, clássico, tradicional. Sim, é claro que fez bem em ter vindo embora, refletia em silêncio, meneando a cabeça afirmativamente. Esse liberalismo desenfreado legitimava uma vida dissoluta e criava filhos terríveis para o mundo. E o mundo estava precisando justamente de filhos melhores.

“E eu chorando pela estrada, mas o que eu posso fazer?”, lamentava o cantor no rádio do carro, quando o celular vibrou novamente. A namorada sempre o censurou por usá-lo enquanto dirigia. Era perigoso, negligente. Sim, é verdade. Mal tivera tempo de inclinar-se para pegar o aparelho, quando sentiu um impacto vigoroso na lataria do carro... acertara alguma coisa em cheio. Puta que pariu!

Freou o carro bruscamente e de qualquer maneira, e desembarcou para conferir. A noite estava singularmente quieta. Parecia mesmo ouvir as batidas do coração, sim, era possível. Passou em frente aos faróis, ofegante, e tremendo de susto. Não havia nada nem ninguém avante do carro, nem mesmo um animal. Sobressaltou-se, outra vez. O que poderia ter acontecido?

O paralamas direito, contudo, possuía uma discreta mossa. Agachou-se, brevemente, ajustou os óculos com a ponta dos dedos e observou com mais cuidado, tornando a olhar em volta, no momento em que um débil relâmpago brilhava entre as nuvens. Nada mesmo. E isso era assustadoramente estranho.

Suspirou, intrigado, e ergueu-se apoiando as mãos nos joelhos. Uma névoa sinistra e assombrosa começava a se formar em torno, quando voltou para o carro. Pôs o cinto, e engatou a primeira marcha, sentindo a respiração desacelerar lentamente. Já estava para arrancar com o veículo quando percebeu no retrovisor a presença de alguém no banco de trás.

– Eu... eu morri? Você me matou! – murmurou um homem, num tom choroso, quando o carro perdeu o ciclo.

– Oh, meu Deus! Eu não tive culpa, eu... foi sem querer! – argumentou o jovem, em desespero e outro relâmpago cruzou o céu.

– Você me matou, seu filho da puta! Você me matou e vai pagar por isso! – insistiu aquele que estava no banco de trás, a voz carregada de raiva, num timbre vigoroso e ameaçador.

– Senhor, meu Deus! Conduza esta alma por um caminho de luz e perdoa teu pobre servo... – suplicou o motorista, fechando os olhos e unindo as mãos em oração, quando uma escandalosa e quase interminável gargalhada estrugiu no carro.

– É brincadeira! É brincadeira, cara! – explicou o homem, aos soluços, a voz ainda embargada pela risada.

– Como é? – perguntou ele, num tom melancólico e intrigado. Mirou o retrovisor central outra vez, tomado pela curiosidade, mas pouco podia enxergar na escuridão.

– É sacanagem, calma! Eu não sou um “fantasma”. – explicou o homem, assumindo repentinamente um ar grave. – A verdade... a verdade é que isso é um assalto. – assumiu ele ao encostar um gélido aro metálico na nuca do rapaz. – Faz um Pix pra mim, passa o relógio, carteira, cartão de crédito e senha, os tênis e depois a chave do carro. Desce bem devagarinho e não tente nenhuma gracinha. – concluiu friamente.

O homem ocupou o volante e quando o jovem já estava do lado de fora, abaixou o vidro do carona e completou, antes de sumir na escuridão da noite: “Aí, gente boa! Esse óculos aí é pra quê, miopia? Passa ele pra cá também...”.

Passava das duas da manhã quando decidiu pedir carona. Inutilmente, é claro e evidente. Quem, em seu juízo perfeito, daria carona para um completo desconhecido, em plena madrugada?

Puta que pariu! De que valem ares de bom moço, valores elevados, no mundo torpe em que vivemos? Definitivamente, não fizera bem em ter vindo embora. Foda-se o que quer que pensassem. Devia ter ficado, é verdade. Mas agora... agora era tarde demais.


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