Um Natal (quase) perfeito
“A questão não é atingir a perfeição, mas sim a totalidade.” (Carl Jung)
Era meados de dezembro quando espalhou-se a notícia. A princípio, uma possibilidade absurda, remota e quase fantasiosa, que ganhou credibilidade na confirmação das autoridades, num esparrame de persuasivos termos técnicos e a consequente replicação em jornais, telejornais, redes sociais e antissociais. Estava agora na boca e na mente do povo, em todas as esquinas, nas vozes das beatas, no imaginário infantil e na cuspidela dos bêbados nos bares.
Aproximava-se com velocidade da costa, o que os cientistas chamaram de “El vecchio”, uma massa de ar glacial, fenômeno raríssimo e talvez inédito que, ao alcançar o continente, encontraria em plena noite de Natal, na Serra Fluminense – mais precisamente em Nova Friburgo – as condições perfeitas para (pasmem!) nevar.
Nevar? Seria o Natal perfeito, como naqueles filmes hollywoodianos, as crianças brincando com os flocos de gelo, de gorros, cachecóis e suéteres; lareiras acesas nas casas, bonecos de neve nos quintais (com direito a nariz de custosas cenouras). É verdade, ninguém acreditou, num primeiro momento. Falou-se em fake news; pseudoestudiosos desmentiram por A+B; memes circularam nas redes sociais... mas com a fatídica data se aproximando e a temperatura caindo vertiginosamente, não se sabia falar de outra coisa. Nem mesmo o recente resultado das eleições podia fazer frente ao assunto tão excitante e fantástico.
Pacotes de turismo foram vendidos às pressas, eventos foram programados pela prefeitura, o estoque encalhado de roupas de inverno ocupou as vitrines e reaqueceu a economia, ainda em recuperação pela pandemia. Equipes de TV de várias partes do país ocuparam as ruas e Nova Friburgo tornou-se matéria no Brasil e no mundo: a única cidade brasileira fundada por um decreto real e que teve neve em pleno verão.
A reunião familiar para ceia de Natal esse ano foi completa, não faltou ninguém. Todos foram perdoados, que ficasse para trás toda rusga e mágoa, efeito do Espírito de Natal, com direito a neve e tudo. “Esquece isso... deixa pra lá”.
Reunidos em frente à lareiras improvisadas, degustavam os aperitivos ao sabor do vinho, nozes e frutas secas, tudo muito europeu, para combinar com o clima. Selfies e fotos familiares era feitas a todo o momento para quase que instantaneamente ganharem as redes sociais, ao som de músicas natalinas – e pagodes incidentais, porque nós somos brasileiros, afinal.
Esfriou rápido e a tensão era crescente. Mas vá lá, sempre há uns tios, pra lá de Bagdá, aos quais ninguém dá muita atenção no que dizem. Dormitam numa cadeira de ferro muito antes da meia noite, após falar um monte de bobagens com a voz embargada. “Vai nevar sim, lá na puta que o pariu!”.
Pois é. A tal massa de ar glacial era tão rara, tão absurda, que não deu as caras mesmo. Perdeu a força e provocou apenas um ciclone extratropical, ressacas e muita chuva. Frio sim, mas neve que é bom nada. E lá se foi a oportunidade do friburguense se sentir americano ou europeu. Mas ao fim e ao cabo, todo mundo percebeu que para o Natal ser perfeito, ninguém precisava de neve. Bastava a família reunida, os pecados perdoados, as crianças fantasiando flocos de gelo, um tio pra lá de Bagdá falando bobagens, passas no arroz, discussões sobre o resultado das eleições, e fotos com os amigos e parentes, ao som de músicas natalinas e pagodes incidentais. Porque nós somos brasileiros, afinal.
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