MENU

Fale Conosco

(22) 3512-2020

Anuncie

Contato comercial

Trabalhe conosco

Vagas disponíveis

Um serviço (nem tão) simples

Por George dos Santos Pacheco
02/08/23 - 10:03

“A verdade surge mais facilmente do erro do que da confusão.” (Francis Bacon)

Considerava o recente e jocoso epíteto um tanto exagerado. Claro que era. Onde já se viu? O infeliz incidente ocorrera pura e simplesmente por conta de uma ironia do destino, caso fortuito, força maior. E embora já o houvessem chamado de tudo quanto é nome, aquilo… ora aquilo… aquilo “não era motivo para tanto”, afirmava – em alto e bom som, com o rosto corado, num muxoxo desconcertado – a todos que tomassem conhecimento do episódio. Era, definitivamente, um exagero – e fim de papo.

Contudo, o vigor da alcunha é diretamente proporcional ao esperneio de quem a ostenta. Quanto maior a pirraça, maior força o apelido tem. Não é? Pois é. E não foi diferente com nosso protagonista. Deu-se que o afilhado do Balboa, um jovem motoboy – tinha um serviço (nem tão) simples: entregar uma encomenda num consultório médico, no centro da cidade, em um prédio em frente à Estação Livre. Como dir-se-ia nos anos noventa, era molezinha. “Mamão com açúcar”! Acontece que, como todo “serviço simples”, alguns riscos sempre estão envolvidos, não obstante frequentemente negligenciados.

Enfim, já de posse do dito embrulho, jogou-o de qualquer maneira dentro da mochila, junto com algumas pastas de documentos e rugiu a 150, acelerando pelos corredores formados entre os carros, buzinando impacientemente para alertar sua presença. Era um tanto exagerado, dirá o leitor, contudo, motoboy está sempre com pressa. Chegando ao prédio, encostou a moto na guia, pendurou o capacete no guidão e avançou em passos céleres rumo ao edifício. Acenou para o porteiro com a mão que continha o envelope, e deparando-se com o elevador, calcou (exageradamente) o botão do aparelho, embarcando na máquina, ato contínuo. Chamou o andar e, em questão de segundos, as portas se fecharam. Foi tudo muito rápido – e exatamente por isso, começou o seu martírio.

Ah, apressado leitor. A distração pode acontecer de várias maneiras e a confusão de muitas maneiras mais. Após o solavanco do elevador, que se punha em movimento, conferiu o estado do cavanhaque no espelho, sacando o celular em seguida para verificar se havia alguma mensagem da firma. E como num passe de mágica, repentina e brevemente, feito um susto, a porta se abriu outra vez.

Desembarcou do aparelho, cruzando com uma mulher à saída. Para ser bem sincero, talvez nem fosse mulher, não tinha reparado direito, tamanha sua pressa. Podia ser um hippie, ou quem sabe um roqueiro cabeludo, bossa nova ou Maomé. Tanto faz.

Melhor assim: esbarrou com um transeunte qualquer ao sair da máquina e seguiu pelo corredor, conforme indicado. “O consultório fica no terceiro andar, no final do corredor, à esquerda”. E lá se foi ele.

A secretária abriu a porta de vidro temperado, com olhar intrigado, após o boy bater impacientemente com os nós dos dedos e sorrir.

– Pois não? – perguntou a mulher com a porta entreaberta, os óculos de aro redondo escorregando para a ponta do nariz.

– Mandaram eu vir entregar um envelope no doutor... – respondeu ele, balançando o invólucro de papel pardo na direção da senhora.

– Envelope? – tornou a perguntar a secretária, um tanto desconfiada, meio corpo atrás da porta de vidro.

– Da contabilidade... – explicou ele, com ar insistente.

– Ele não me disse nada, mas vou ver com ele. Você aguarda um pouquinho? – comentou, tomando o envelope de suas mãos e finalmente franqueando-lhe a passagem. Trancou a porta em seguida e saiu batendo o salto na direção do consultório.

– Oh, sim claro. – disse ele enquanto a mulher se afastava, entrando numa segunda sala. Sobre a mesa dela, um calendário de folhas presas numa espiral de plástico, algumas canetas, o computador, um escaninho de três bandejas e a foto do médico segurando um bichinho de pelúcia. Curioso como todos tem a mesma cara. Médico tem cara de médico… assim como as secretárias tem cara de secretárias, porteiros tem cara de porteiros e motoboys tem cara de motoboys.

Suspirou, enfastiado. A mulher não voltara ainda. Aguardou por mais um minuto, batendo o pé impacientemente. Puta que o pariu. E essa mulher que não vem... Olhou novamente o relógio e então, um quase mimetizado telefone começou a tocar. Tocou, tocou e tocou, e nada de secretária. Puta que o pariu. Esticou o pescoço pra ver se ela poderia estar vindo, mas nada. Pensou em bater o telefone, mas achou que poderia ser flagrado e isso seria desconcertante. Olhou para a porta do médico e de lá para o aparelho telefônico, e não se aguentou.

– Alô?

– Acho que ela engasgou... – disse a mulher do outro lado, parecendo falar com uma terceira pessoa em seu bordo da linha.

– Como é minha senhora?

– Tá engasgando sim... – repetiu, num tom melancólico e desesperado.

– Por favor fique calma... – orientou ele, sentindo o suor brotar na testa. Ergueu o pescoço na direção do consultório, mas nem secretária, nem médico, nem porteiro. Ninguém. Puta que o pariu.

– Me diz o que eu faço! – perguntou a mulher aos prantos e ele quase que lhe faz a mesma pergunta.

– Espere aí que eu...

– Esperar o que? Me ajuda! – interrompeu ela, bruscamente, para desespero do jovem.

– Bate... bate nas costas dela! – orientou ele. Isso sempre dá certo.

– Bato como? Pego no colo ou deixo ela de quatro? – perguntou a mulher, choramingando, a voz se tornando distante. Cadê a porra da secretária?

– De quatro? Meu Deus, bate de qualquer maneira!

– Bati, parece que melhorou. Não, acho que bati forte demais. Tá balançando o rabo e mexendo as orelhas, os olhos estão revirando!

– Meu Deus! – gritou ele, abandonando o telefone sobre a mesa e girando a chave desesperadamente na porta de vidro.

– Me ajuda! Me ajuda, doutor! – gritava ela, mas ele nem ouviu quando ganhava o corredor em direção ao elevador em grande velocidade, o corpo tomado de um frêmito nervoso, banhado em suor, o coração saltando-lhe da boca.

A secretária, finalmente saíra da sala do médico e quase o alcança. Parado novamente em frente ao elevador, esbaforido e apavorado, apoiou as mãos na cintura, no momento em que percebia o irônico descuido.

– Ô! – gritava a secretária, ainda sob os umbrais. – O consultório do Dr. Mauro é no terceiro andar! – esclareceu, balançando a mão com o envelope em direção ao teto.

“Ironia do destino”, repetiu ele e precisei conter o riso. “Não, não foi motivo para tanto”, concordei para alegria de nosso jovem amigo, no momento em que ele virava mais um gole de cerveja no copo americano. Apoiou o copo no balcão, limpou os lábios com as costas da mão e confessou, ruborizado: apesar de achar um exagero aquele apelido, precisava reconhecer: Doutor até que lhe caíra muito bem!


O Portal Multiplix não endossa, aprova ou reprova as opiniões e posições expressadas nas colunas. Os textos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores independentes.

TV Multiplix
TV Multiplix Comunicado de manutenção TV Multiplix Comunicado de manutenção
A TV Multiplix conta com conteúdos exclusivos sobre o interior do estado do Rio de Janeiro. São filmes, séries, reportagens, programas e muito mais, para assistir quando e onde quiser.