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Uma grande calúnia

Por George dos Santos Pacheco
25/12/24 - 10:13

"Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel" (Assis Valente)

A reunião ocorreu quase às vésperas do Natal, já no início da madrugada, como é habitual entre pessoas de hábitos noturnos. A Casa Branca, localizada em um ponto impreciso próximo ao Polo Norte, não constava em nenhum mapa conhecido e havia sido cuidadosamente construída sobre uma falha no campo magnético, indetectável até mesmo pelos satélites. O grande salão oval estava iluminado suavemente por uma acolhedora lareira, além de castiçais prateados dispostos sobre as mesas de madeira escura e móveis em capitonê, no melhor estilo vitoriano. Um ambiente ideal para o tipo de discussão que ali se faria. Klaus, agora chefe emérito daquele conselho de anciãos, havia aprovado a utilização daquele local para tais reuniões muitos e muitos anos antes. Agora, ocupava o extremo ao fundo, de frente para fisionomias severas.

— Camaradas, boa noite. Creio que, neste ponto, todos já sabem o motivo desta reunião… – disse ele, com a barba inteiramente branca, os olhos vermelhos e penetrantes.

— Traição! É disso que se trata! – bradou o velho turco, gesticulando de maneira agitada. Era um dos membros mais antigos do Partido e sentia uma profunda dor na alma quando algum companheiro contrariava os princípios estabelecidos, especialmente os mais jovens.

— Acalme-se, por favor… acalme-se. – pediu, em tom ameno e suspirou. — Proponho que o companheiro inglês para secretariar esta reunião extraordinária e faça uma breve exposição sobre a denúncia recebida. — complementou Klaus, com visível pesar. Em séculos de tradição, essa era a primeira vez na história que isso acontecia.

— Goodnight, my friends… A denúncia é anônima, mas formalizada pelos canais adequados, e foi direcionada ao brasileiro. Segundo o relato, com detalhes minuciosos, entre outras acusações, no ano passado, ele “esqueceu” cerca de 70 milhões de pessoas, ou seja, violou uma cláusula fundamental de nossa instituição. Naquele ano, milhões de brasileiros não receberam presentes. Ora, nós nunca esquecemos de ninguém!

— Isso… isso é uma calúnia! Uma grande calúnia! — exclamou o brasileiro, tentando se defender. — São acusações infundadas, baseadas em fake news! Fake news, eu disse! – continuou, agitando as mãos nervosamente e olhando ao redor, como se buscasse apoio.

Um princípio de tumulto começou com um burburinho que cresceu e se tornou uma discussão acalorada. Klaus ergueu o punho cerrado e, num átimo, todos se calaram.

— C'estabsurde! – murmurou o francês, fingindo interesse, antes de dar uma mordida em uma rabanada servida no farto coquetel, que incluía frutas, nozes, pernil e Chester assados, deixando a barba suja com açúcar e canela.

— Não é tudo, senhores — pigarreou o secretário, retomando a palavra. — Resta ainda a acusação de que o Papai Noel brasileiro está emagrecendo visivelmente, ano após ano, além de ter sido visto em condições deploráveis, com o uniforme sujo e desarrumado, justamente por desviar os fundos destinados ao seu auxílio-paletó para cobrir o déficit no adicional natalino… – concluiu o secretário, quando uma onda de vaias e críticas ecoou pelo salão. Chamavam o Papai Noel brasileiro de subversivo, conspirador, arauto do caos, fascista, além de outros termos de reduzido e censurável calão. O russo e o americano quase chegam as vias de fato e Klaus precisou intervir novamente para controlar os ânimos.

— Ordem! Ordem, cavalheiros. Somos melhores do que isso! – exclamou o velho, levantando-se e, em poucos minutos, o ambiente ficou novamente em silêncio. — Agora, coloco em votação nesta assembleia extraordinária a cassação dos direitos natalinos do Papai Noel brasileiro.

— Calúnia! – gritou novamente o velho tupiniquim, calando-se ao levar um safanão do argentino.

Os velhos então sacaram as manjadíssimas canetas francesas do bolso dos paletós e registraram seus votos em pequenas folhas de papel sulfite, depositando-as uma a uma na urna de madeira. O português se ofereceu para contar os votos, mas foi recusado devido aos seus vínculos familiares com o Brasil. O suíço assumiu a tarefa e, após concluir a contagem, anunciou o resultado com voz firme e clara, que reverberou no grande salão.

— Por 19 votos a 1, esta assembleia extraordinária decide pela imediata destituição do Papai Noel brasileiro de suas funções por um período de quatro anos, salvo a ocorrência de novas acusações, o que acarretaria novo julgamento, conforme a legislação vigente. – concluiu o suíço, franzindo os lábios e balançando a cabeça antes de se sentar. Tomando a caneca de chocolate quente, virou a bebida sem soprar e encarou Klaus, que levantou-se imponente e limpou a garganta antes de dar o veredito.

— Levando em consideração a decisão da assembleia e as evidências apresentadas a este conselho de Natal, fica sumariamente afastado de suas funções, a partir deste momento, o Papai Noel brasileiro. Registre-se a deliberação em ata… – anunciou com sua voz grave e solene, de inapelável sentença, magistrado por força de sua posição hierárquica. Já estava prestes a encerrar a reunião, quando percebeu que um detalhe crucial ainda não havia sido decidido. Passou a mão no rosto, como se tentando afastar a exaustão, suspirou e olhou novamente para os anciãos. Estendeu o braço, apontando com o dedo para um dos velhinhos e proclamou:

— Ei, você aí! Você, de barba branca. Não, você não; o de vermelho, o da esquerda. Isso, você mesmo. Vá até o Brasil e substitua nosso homem. E que seja o que Deus quiser!


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