Vossa Sabiriqueza
Existe um negócio muito bacana na Língua Portuguesa chamado adequação de registro, ou adequação linguística. Trocando em miúdos, trata-se de um ramo da Linguística que considera legítimas todas as variantes da língua, cabendo ao falante modular seu registro, de acordo com o interlocutor, o ambiente, a situação comunicacional, e até o assunto. Ou seja, tem um jeito de falar na igreja, na escola, no trabalho, na família e até no bar, sem considerações de certo ou errado.
Já viram aqueles filmes em que uma dupla de policiais interroga um suspeito? Pois o policial mau é a Gramática, para a qual qualquer desvio da norma padrão está errado, e o policial bom é a Linguística. A questão é que o assunto sempre rendeu bastante confusão, justamente porque várias gerações foram criadas sob os domínios da Dona Gramática – e foi isso que criou diversos preconceitos na nossa sociedade: quem fala “errado", de acordo com a Gramática, é inferior, é vulgar, é simplório, etc., etc. E ninguém quer ser rotulado assim.
Certa ocasião, estive no bar do Balboa. Geralmente eu não sou de ficar lá muito tempo, tomo meus birinights, troco meia hora de ideias com meu chapa e outros amigos, e vou me embora. Neste dia, embora com mais pressa, deu pra ver dois camaradas jogando baralho lá no cantinho. Sabirico (porque tinha o nariz parecido com um... ah, você entendeu né?) e o Meio Quilo, um baixinho nordestino que morava há quase vinte anos na cidade. O jogo consistia em formar uma trinca de mesmo número, após jogadas de troca de cartas com o adversário e compra do bolo no centro da mesa.
– Nobre colega, poderia me passar o aperitivo para eu degustar com meu drink? – disse Sabirico, acenando a cabeça em direção ao pratinho com azeitonas. Deu uma talagada na cachaça.
– Data vênia, Vossa Sabiriqueza poderia ter a delicadeza de entregar logo a testilha para que eu possa regozijar-me às suas custas? – retrucou o adversário, fazendo referência à uca apostada.
– Permita-me uma colocação, ô... prole de meretriz: Vossa Sabiriqueza é teu rabo! Burro! – retorquiu, explodindo numa gargalhada e deitando na mesa três cartas de número sete.
– O que houve com esses dois? – perguntei, enquanto Balboa me servia a cerveja.
– Viram qualquer matéria na TV e cismaram de falar assim. Disseram que seriam mais respeitados se falassem bonito. – respondeu com a boca torta.
Agora, caros terráqueos, tem cabimento um negócio desses? Quer dizer que pra ser respeitado tem que “falar bonito"? O pior é que acreditamos nisso, mesmo que de maneira inconsciente. Chegamos inclusive a melhorar o vocabulário numa conversa, a fim de eclipsar o interlocutor. Dá até pra xingar bonito.
Eles não deviam nem saber o significado de alguns termos que estavam falando, como o personagem de O Famigerado, do Guimarães Rosa – e isso não é necessariamente ruim. Assim como a este, aconteceu também a Leninha, moça que trabalhava pra minha tia – fissurada em novelas (das seis, sete, oito, nove e dez) e é fato que a TV e as novelas, sobretudo, ditam modas e comportamentos. Pois minha parenta, naquele dia, recebeu à porta, a visita de um amigo do trabalho, a fim de dar-lhe um breve recado. Era um rapaz novo, estudado, garboso, e corpo atlético. Ao fim da conversa, foi-se embora, caminhando elegantemente pela rua, com seu terno e gravata. Leninha acompanhou-o com os olhos brilhantes.
– É um cafajeste... – disse num sorriso sacana, vendo o homem afastar-se, e foi imediatamente repreendida por minha tia.
– Leninha! O que é isso? Que termos são estes?
– Ué, e não pode não? Eu achava tão bonito!
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