Eu mesmo
“É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues fazer um bom julgamento de ti, és um verdadeiro sábio.” (Antoine de Saint-Exupéry)
Eu não faço ideia de como fui parar ali. O pé direito era alto, as paredes pintadas em branco gelo. Os detalhes das colunas nos cantos, em madeira, remetiam à arquitetura neoclássica, assim como o assoalho e a grande banca a frente, num patamar mais elevado. O ambiente era claro, iluminado por lâmpadas frias e a luz externa, que entrava por grandes janelões de vidro, hermeticamente fechados. Eu trajava um terno e gravata pretos, a camisa social branca, assim como o homem ao meu lado, o qual pude notar de soslaio. Seus braços apoiavam-se na mesa, folheando uma pasta de documentos. Virei-me em sua direção e arregalei os olhos, num assombro. Exceto por um volumoso bigode, o sujeito era ninguém menos que eu mesmo.
– Fique calmo, tudo vai dar certo. – tranquilizou, passeando em torno olhares apreensivos.
– Mas que p… – murmurei, sendo interrompido novamente quando ele (eu) fechou a pasta, espalmando a mão sobre a capa, voltando a me encarar.
– Deixa que apenas eu fale, ok? – orientou seriamente. Um burburinho de vozes ecoava ao fundo do auditório, e uma viva curiosidade sustinha-me. Voltei o corpo para trás, e tornei-me ainda mais perplexo.
Estávamos separados de uma espécie de assembleia, por um guarda corpo em madeira, num estilo colonial. “Mas que loucura é essa?” Assim como o homem ao meu lado, as pessoas espremidas nos bancos eram todas versões de mim. Havia um anafado Pacheco, estufado numa camisa de malha, absorto na mordida em um promíscuo hambúrguer, cujo molho caía-lhe gordurosamente sobre o colo; outro era punk, com o cabelo cortado em moicano, arrepiado e fixado com laquê ou coisa do tipo, brinco na orelha esquerda, piercing no nariz e lenço vermelho no pescoço. Além desses, havia ainda um sujeito com sorriso cafajeste, camisa social aberta até o meio do peito, óculos solar do tipo aviador, palito de madeira no canto da boca, cordão dourado no pescoço; uma mulher com penteado e vestido dos anos 1980, bebê ao colo, ombro enlaçado por outra mulher, de cabelo curtinho e roupas ligeiramente largas, que me encarava numa postura desafiadora. Havia outros, muitos mais, inclusive um inteiramente pintado de verde, de expressão raivosa e peruca arrepiada, sem camisa e bermuda rasgada, um arremedo ridículo do Lou Ferrigno. Todos, sem exceção, tinham minhas feições (inclusive o bebê).
Súbito, uma sineta tocou e todos se levantaram, comportamento imitado por mim. Entrou um Pacheco de toga e peruca inglesa, seguido de outros dois. Eles ocuparam seus lugares na mesa e depois todos nos sentamos novamente.
“Boa tarde, senhoras e senhores, daremos início, neste momento, à instalação da sessão do Tribunal…”. Sete jurados, homens e mulheres, ocuparam o Conselho de Sentença, imediatamente. O juiz então bateu com o martelo e anunciou a entrada da testemunha de acusação. Deixa eu adivinhar… era eu mesmo?
– Ele é ansioso, não gosta de ser apressado e se cobra em demasia. É guloso, irrita-se com facilidade, é falastrão, pode ser estúpido e grosseiro com as pessoas dependendo do seu estado de espírito… – explicou ele, fingindo naturalidade, contorcendo as mãos sobre o colo e desviando o olhar do promotor.
– Data venia, meritíssimo, admitamos tais fatos. Contudo, como minha testemunha poderá comprovar, a título de atenuante, o réu não mede esforços em ajudar quem quer que seja, é justo e honesto, dotado de uma extraordinária capacidade crítica, é divertido e tem bom gosto musical. Faz uma caipirinha daquelas. Bom pai, bom esposo, bom amigo e companheiro de trabalho… – argumentou o advogado, num tom calmo e dicção lenta e cadenciada. – E não fala de boca cheia, como muitos dos aqui presentes já o caluniaram. – complementou ele, meneando o dedo em riste em direção ao teto, para protesto da plateia. “Safado! Mentiroso!”, esbravejaram indignados, e bolinhas e aviõezinhos de papel passaram voando por cima de nossas cabeças. Metade de um hambúrguer tirou um fino da minha orelha esquerda.
– Ordem! Ordem no Tribunal! Basta! Chega dessa chacrinha! – esbravejou o Juiz, com as faces ruborizadas, batendo o malhete vigorosamente. Sua peruca caía-lhe de banda, motivo de comentários e risinhos escarnecedores e debochados. O homem bufava de raiva, coçando o cocuruto, parecendo-lhe custoso recobrar a calma. Subitamente e sem aviso, pôs-se de pé, e somente assim fez-se silêncio, outra vez.
“Todos de pé para a leitura da sentença”, disse uma voz, cujo dono não pude identificar, embora soubesse ser algum “eu mesmo”, e todos nos levantamos, apressadamente. Ficou claro para mim, que já dera no saco do Juiz aquela troca de acusações e que ele pretendia, usando os poderes a ele instituídos, abreviar os ritos e protocolos, dando fim à sessão e publicando logo seu veredito. Tentei falar a meu favor, mas dominava-me uma sensação de estupor que degenerava em uma impotência avassaladora. Meus lábios pareciam costurados um ao outro e eu não conseguia articular som algum.
“Ouvidas as testemunhas, o promotor e o advogado de defesa, levando ainda em consideração as situações agravantes e atenuantes – e ignorando solenemente os votos proferidos pelo Conselho de Sentença – declaro o réu...”
– Fique calmo, tudo vai dar certo. – disse o homem sentado ao meu lado, passeando em torno olhares apreensivos. Atrás de nós, um burburinho de vozes forçosamente comedidas.
– Mas que p… – murmurei, perplexo. Tudo recomeçara. E então me dei conta, pasmo e boquiaberto, que aquele julgamento jamais teria fim.
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