Madame Luzia
“O modo como você reúne, administra e usa a informação determina se vencerá ou perderá.” (Bill Gates)
Foram trinta e um anos de casamento, três filhos, dois netos. Morrera assim, estupidamente, engasgado durante um almoço de domingo, num dia quente e abafado, sol à pino e radiante. De nada adiantara os tapas nas costas, os braços levantados, o desespero da família… nada, nada. Tudo foi tão rápido, tão improvável, que ninguém acreditou. Os vizinhos, assombrados, comentavam boquiabertos, as mãos cobrindo os lábios num gesto de incredulidade. Morrer assim? Ninguém apostaria.
A mulher vestiu o luto por meses, a casa arrumada, a mesa posta como se o marido fosse regressar de uma longa viagem, a qualquer momento. Não voltaria e ela o sabia, perfeitamente. Deixava-se mergulhar na penumbra das tardes, no silêncio do quarto do casal, mas nada, nenhum arrepio na derme, nenhum sonho ou coisa parecida. Achava que aquilo beirava a má educação e descaso do falecido. Onde já se viu?
Foi lá pelas tantas que, num misto de indignação e saudosismo, resolveu consultar, em segredo, a clarividente mais conhecida do bairro: Dona Luzia, senhora de quase setenta anos, cabelos branquinhos isentos de tinta, óculos redondos de vidro grosso, rosto quadrado. “Madame Luzia sabe, Madame Luzia diz…”. Ora, é claro que sabia. Media apenas metro e cinquenta, mas era uma baita de uma fofoqueira. Passava os dias assuntando sobre a vida alheia, aqui e ali – até lixo já vasculhara. E assim, eventualmente, ganhava uns vinténs, graças ao seu mais deleitoso passatempo, prazer inestimável e injustamente incompreendido.
À hora marcada, nem um minuto a mais ou a menos, abriu a porta da sala para sua mais nova cliente. A viúva deixara os tons de luto para estufar um extravagante vestido branco, assim como a anfitriã, esta, cheia de anéis e penduricalhos, turbante improvisado na cabeça. Sentaram-se à mesa, após um cafezinho de cortesia e meia dúzia de palavras, método infalível para relaxar os convivas.
– Madame Luzia sabe, Madame Luzia diz... – proclamou a velha senhora, após limpar com a língua, os dentes sujos de broa de milho, ofertado carinhosamente pela cliente, que não a acompanhara no lanche vespertino. Simplesmente, não conseguia… a tristeza lhe consumia, após a grosseira partida do marido.
– Ah, eu estou tão nervosa... – balbuciou a outra, ameaçando levantar-se, mas a vidente de araque segurou-lhe firmemente as mãos e chiou os lábios, a fim de suscitar-lhe a paciência. A sala era pequena e escura, silenciosa e quase sufocante. A luz da vela virgem, que derretia em um castiçal prateado, bruxuleava sobre uma foto do falecido, na mesa coberta pela alvíssima toalha, um copo de água fresca fazia-lhe companhia. O velho encarava as duas mulheres com um olhar galante e sedutor. Ah, o velho Bartô!
– Preciso que acalme-se, para que possamos fazer a comunicação. Respire fundo, bem lentamente, solte o ar com a boca… fazendo biquinho. Isso! – instruiu, modulando a voz para algo mais maternal. – Agora, feche os olhos e pense nele... sim! Pense nele, querida! – concluiu, empostando a voz num tom assertivo e misterioso. Após um brevíssimo suspiro, novo silêncio se fez. – Bartolomeu, Bartolomeu… se está aqui, nos dê um sinal… – invocou Madame Luzia. Subitamente, a mesa tremeu e, ato contínuo, a vela se apagou (não sem um discreto sopro da senhora clarividente).
– Neném? Meu amor! – murmurou o falecido, pela boca de Luzia, que lhe imitava quase com perfeição a dicção e o tom de voz, naquela atmosfera sombria e fantasmagórica. Aquele que não fala com os lábios, fala com as pontas dos dedos.
– Bartô? É você mesmo? – perguntou a viúva, sentindo o corpo fremir num tremor emocionado, os olhos marejados de lágrimas.
– Claro que sou eu, meu docinho... que saudade! – afirmou o espírito, num tom saudoso e satisfeito, resultado de anos de experiência.
– Também estava com saudades! Ah, meu Deus! Por que não entrou em contato antes? Rezei tanto para que viesse pelo menos em sonho... – reclamou tristemente a senhora, segurando com força as mãos da vidente sobre a mesa.
– Entenda, por favor. As coisas aqui não funcionam assim, Neném... – explicou, fleumático, o desencarnado, com voz rouquenha e hesitante. Madame Luzia tinha a cabeça baixa, um tanto inclinada para o lado, e falava com os lábios ligeiramente frouxos, para causar efeito.
– Como é aí? – perguntou a mulher, curiosa feito uma criança. Dona Luzia já estava mais do que acostumada com esse tipo de pergunta. As pessoas gostam de imaginar o céu como naquela novela antiga, os defuntos todos de roupas brancas como se comemorassem o réveillon num verdíssimo gramado, sol radiante e temperatura amena. Disfarçou um pigarro e prosseguiu.
– Aqui a grama é verdinha, verdinha... tem anjo pra tudo que é lado, todo mundo usa branco… – disse ela (ele) num tom sossegado.
– Fica todo mundo de branco? – comentou, embasbacada. – E as mulheres? São bonitas?
– Aqui tudo é bonito, meu bem. – respondeu, evasivo.
– Ai, ai, Bartô... você precisa me responder uma coisa. Você… você me traiu? – concluiu, enfática, apertando ainda mais as mãos nodosas e artríticas da velha.
– Ora, mas que pergunta! – disse ela, num tom surpreso.
– Pode falar agora, meu amor. Não faz mais sentido esconder isso de mim. – argumentou Dona Neném, com voz tranquila, baixa e melodiosa, deixando a vidente confortável. Madame Luzia sorriu por dentro: ela, mais do que ninguém, sabia de tudo.
– A carne é fraca, Neném. – respondeu Bartolomeu, o pé de valsa dos fins de semana, por quem respeitáveis senhoras suspiravam. Ah, o velho Bartô!
– Há quanto tempo, hein? – continuou a viúva, aumentando gradualmente o tom de voz e apertando com ainda mais vigor as mãos da vizinha paranormal. Dona Luzia ergueu o rosto, desconcertada.
– Err… isso também não faz sentido. – disse ela, observando sorrateiramente a cliente, com os olhos semicerrados. Havia alguma coisa errada.
– Não faz porque não foi com você. Mas fica tranquilo. Não vim aqui por saudades, seu cachorro! Vim aqui pra dizer que eu descobri tudo. Coloquei de propósito a azeitona no seu prato… assim como coloquei veneno de rato na broa de milho. Já, já, sua amante vai lhe fazer companhia.
– Você o quê?! – gritou Madame Luzia, com os olhos arregalados, desvencilhando-se a custo das mãos de Dona Neném, que agarrava-lhe feito uma tenaz. Levantou-se de um salto, derrubando a cadeira, segurando a garganta enquanto tossia, desesperadamente. – Socorro! Socorro!
– Ué, cadê o Bartolomeu? – perguntou a viúva, num sorriso debochado, enquanto se aproximava da vidente, a tosse vigorosa ecoando no cômodo escuro.
– Sua maluca! O que você fez? – esbravejou Dona Luzia, com a voz comprimida, sentindo a vista turvar e o coração bater fortemente dentro do peito. Precisava de água! – Água! – gritou, atirando-se sobre o copo na mesa.
– Eu não fiz nada, sua velha safada. Achou que eu não fosse descobrir? Que ninguém fosse descobrir? Todo mundo sabia, menos eu… até coisa de uma semana. Não há nenhum segredo que possa ficar oculto: nós nos traímos por todos os poros.
– Sua doida!
– Não matei o Bartô, nem coloquei veneno no seu bolo. Era só erva-doce mesmo… – disse Dona Neném, tomando, satisfeita, o rumo da saída. Foram trinta e um anos de casamento, três filhos, dois netos. Bartô morrera assim, estupidamente, engasgado durante um almoço de domingo, num dia quente e abafado, sol à pino e radiante. Poderia, agora, finalmente, descansar em paz. Ele e Dona Neném. Madame Luzia não.
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