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Tudo bem?

Por George dos Santos Pacheco
03/05/23 - 10:02

“A compreensão de outrem somente progredirá com a partilha de alegrias e sofrimentos.” (Albert Einstein)

Eram umas dez e trinta da manhã de um sábado, estava de folga do trabalho e desci a pé para comprar pão. O tempo era agradável, de céu azul e pouquíssimas nuvens, temperatura amena. Um galo cantou em algum lugar perto dali e uma revoada de maritacas fez um estridente rasante, no momento em que eu passava pela portaria. Canários da terra gorjeavam, cigarras ciciavam ao calor da manhã. Benza-o Deus!

Que dia prazeroso e sossegado! “Bom dia!”. Palmilhando a calçada da rua Grécia, foi possível, inclusive, cantarolar aquela música com a qual acordei na cabeça – os anos 1980 foram muito bons em matéria musical. Já aconteceu com você? Claro que sim. “Bichos! Saiam dos lixos!”

E embora fosse um dia assaz tranquilo, conferi o relógio e apurei um pouco mais o passo… todos me aguardavam para o café, afinal. Como não? O pão é uma entidade milenar dos desjejuns, introduzido na família brasileira pelos portugueses e muito bem aproveitado pelo mercado. Se derem mole a gente come pão em cinco das quatro refeições do dia. “Bichos!”

“Bom dia!”. Atravessei o cruzamento do singelo bairro de nome europeu com cuidado, o fluxo de carros naquele ponto é grande, apesar do fim de semana. “Oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo...”. Na entrada da padaria, encontrei um velho conhecido do bairro – daquelas figuras que a gente conhece, porém mal sabe o nome. É sempre “aquele cara que está na missa domingo”, “o que passa de bicicleta de manhã”, mas cumprimenta-se cordialmente em toda oportunidade. E naquele dia não seria diferente.

– Bom dia! Tudo bem? – saudei-o sorridente, quando ele ergueu o olhar do celular. Fez um silêncio estranho antes de responder, depois de uma bufada, um silêncio estranho, incômodo e perturbador. Desacelerei o caminhar.

– Tudo bem, tudo bem porra nenhuma... – resmungou o homem e prosseguiu. – Pô, tá tudo bem não, federal. – concluiu, com as sobrancelhas unidas. Naquele momento pensei que apenas um “Opa" teria sido suficiente. Mas o simpático Pacheco resolveu perguntar se estava tudo bem.

– Ué, amigo... – repliquei , evasivo. “Porque aqui na face da Terra só bicho escroto é que vai ter".

– O carro está no mecânico, ali no bairro Ypu… conhece? Muito bom. Tá fazendo a suspensão. – continuou, guardando o celular no bolso e esfregando o rosto num fastio. – Tá trocando coxim, bucha de balança, batente e até o calço do motor… puta que o pariu.

– Carro é outra família, não é? – afirmei, outra vez escapando da conversa, seguindo lentamente para o interior da padaria, mas o verborrágico amigo, cujo nome eu desconhecia, não parava de falar.

– Eu estava na boca de ser promovido. Gerente! Aí o chefe chamou: “Paulinho...” – ih, o nome do cara é Paulinho – “Paulinho, a empresa está se reestruturando, vamos precisar suspender as promoções até o ano que vem...”. Ano que vem? Fera, eu tenho mais de vinte anos de casa. Vou ter que esperar até ano que vem?

– Pensa pelo lado bom: agora falta menos tempo do que faltava antes! – afirmei, literalmente ainda mais distante, com uma réplica que não acrescentava em nada o diálogo, já dentro da padaria. – Valeu, amigo! – encerrei, por conta própria, com um aceno de mão, no momento em que, saindo sabe-se lá de onde, outro conhecido se aproximava dele. Ufa!

“A professora do meu filho desrespeitou ele em sala de aula… chamou ele de… como é mesmo o nome? É tipo quando o cara está meio aéreo…”, continuava Paulinho, aos atropelos, o peito arfante, o tom de voz febril e indignado. “Já aconteceu comigo também...”, afirmou o interlocutor substituto, também pouco interessado na conversa. Eu caminhava lentamente para o balcão da padaria, distanciando-me sorrateiramente, a fim de não ter de participar outra vez do desabafo terapêutico do recém promovido de simples conhecido a colega de bairro.

Suspirei e enrubesci ao ocupar finalmente meu posto na fila da padaria. “Dez pães, por favor”, sem “Bom dia” e “Tudo bem”, desta feita – e está aí o mote da minha vergonha. O cumprimento em lide é até muito simpático e latino, mas é vazio, frio feito mármore. Sendo bem sincero, o brasileiro, cidadão ci-vi-li-za-do, fraterno, benevolente e cortês, é na maioria das vezes um sujeito muito do egoísta e superficial, mais interessado no próprio umbigo (e no pão do seu café da manhã). O que me custava doar algum a minutos de atenção sincera ao meu colega? Ahn? Não é todo mundo que amanhece de folga, com céu azul de pouquíssimas nuvens, ao som de passarinhos. Eu o deixei, praticamente, falando sozinho e isso é vergonhoso, digno de censura.

Já no caixa, ergui a cabeça a fim de avistar a saída, ansioso por remir minha culpa, minha tão grande culpa… mas não havia mais ninguém lá. Quem sabe eu lembre, numa próxima. Quem sabe? É mais provável, porém, que eu me esqueça e torne a repetir o erro. A profecia de Arnaldo Antunes e companhia se cumpriu. Somos “bichos escrotos". Tudo bem? Não, não está tudo bem.


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