Cansaço, mentira e ódio
A receita para fabricação (ou, pelo menos, radicalização) de uma crise passa pelo cansaço generalizado das pessoas, pela difusão de mentiras e fake news, e pela eleição de inimigos a serem combatidos.
1. O Cansaço
Estamos todos exaustos e desejando respostas simples e acessíveis. A compressão da realidade está cada vez mais binária (maniqueísta mesmo) e superficial (preconceituosa, portanto). Estamos todos atemorizados, assustados, sem perspectivas e com um sentimento de fatalismo. A esperança parece ter se esvaído totalmente. E tudo isso tem promovido cada vez mais radicalismos (no sentido pejorativo desse termo: como sinônimo de fundamentalismo). Há mais reação que ação.
Por isso, quem se apresenta como portador de uma verdade clara e de soluções imediatas tem grandes chances de ser exitoso. Há governos sendo eleitos no mundo todo com esse apelo. O engodo se tornou valor.
2. A mentira
Uma das coisas mais tristes é ser ludibriado. Em qualquer aspecto da vida isso ocorre: trabalho, relacionamentos, negócios, fé e política. Às vezes, tem a ver com mau-caratismo de quem engana; outras, com excesso de ingenuidade de quem é passado para trás. Em geral, ocorrem as duas coisas.
No quesito enganação, há gente que vive de orelha em pé; vive em alerta; desconfia de tudo e de todos; vive como se fosse a vida uma luta contra a mentira; como se houvesse um complô geral contra si. E há gente que sequer se dá conta das engrenagens mais usuais no dia a dia que nos passam para trás sistematicamente; gente que não enxerga uma propaganda enganosa, uma promessa política estapafúrdia, um céu prometido nos púlpitos, um preço abusivo ou o engodo de uma etiqueta famosa.
O curioso, por incrível que pareça, nesses casos, é que enganar é mais fácil do que convencer o sujeito de que ele fora ludibriado. O sujeito é capaz de acreditar na história mais improvável, mas se recusa a ver os fatos e a realidade. Talvez por autoproteção, por vergonha e talvez por limitação mesmo. É o ditado: o pior cego é o que não quer enxergar.
3. O ódio
Todo mundo que já teve a experiência de viver próximo a pessoas confusionistas sabe como é. Esse tipo de gente que vê problema em tudo e se acha no direito de azucrinar a vida alheia. Gente que não suporta o espaço do outro. E vive como se o mundo fosse sua casa. É uma experiência horrorosa. Não há paz. Não há segurança. Vive-se cada minuto na instabilidade de não se saber qual será o próximo problema.
Coisa semelhante ocorre nas relações sociais e políticas mais amplas. Governos que, historicamente, se alimentam do conflito. Governos que precisam de inimigos para se sustentar. As guerras que conhecemos pelos livros de história são, basicamente, isso: adversários criados a serem combatidos.
A questão é que as pessoas comuns no dia a dia ordinário das sociedades nem sempre comungam dos inimigos eleitos pelos seus governos. Por isso, os governos precisam de estruturas ideológicas eficazes na formação das mentalidades. Criar o inimigo é o ponto central de determinados governos. Ter algo ou alguém a ser combatido.
4. As saídas possíveis
Numa democracia verdadeiramente humanizada, é imperioso que seus cidadãos se questionem sempre sobre quem são os inimigos apresentados e se há mesmo razoabilidade nesse discurso. Uma sociedade próspera e feliz não se constrói sob a lógica da guerra. Tampouco se ergue sobre o discurso do “nós” contra “eles”.
É urgente - hoje como em outros momentos agudos da história - que se rompa com o discurso do conflito e das armas. É indispensável repensar uma civilização que se assente sobre a cordialidade.
É hora, mais do que nunca, de reforçar e radicalizar (no bom sentido do termo - de ir em busca das raízes) o apelo aos valores democráticos e pluralistas. Isso dá trabalho e gera incômodos, sim. Mas é a única alternativa.
Questões complexas exigem reflexões igualmente complexas e coragem para inovações. Insistir nas saídas fáceis acabará nos conduzindo por caminhos e destinos cujo retorno custará a dignidade de gerações inteiras.
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