O fantasma de estimação
"O fantasma é um exibicionista póstumo." (Mario Quintana)
Faltava meia hora. Quero dizer, eu achava que faltava; o meu relógio de pulso deu para atrasar. Levei-o ao relojoeiro, achando que o problema era a bateria, mas não, "provavelmente alguma peça empenada", comentou o profissional ao ouvir o tempo de uso do aparelho. E como se tratava de um objeto de estimação, sempre que eu notava o atraso, simplesmente o ajustava e vida que segue.
Vê bem. Reparou, terráqueo, como todos temos animais, costumes, ideias, objetos e até pessoas de estimação? Perdoamos suas falhas e seguimos adiante, porque sua ausência incomoda mais que a presença maculada. Nada nem ninguém é perfeito e sabemos disso muito bem, mesmo que passemos o tempo todo fingindo não saber.
Faltava meia hora, eu disse. Consultei o relógio novamente enquanto subia o degrau do Bar do Balboa. Como tenho a mania de aproveitar o tempo ao máximo, decidi entrar, saudar os colegas e pá pum. Só que nunca é bem assim. Cumprimentei com um "salve", mas quase ninguém prestou atenção, tão entretidos estavam com a anedota do Doutor, por trás do balcão.
— Tô falando a sério. Eu entrei aqui pela manhã; sempre deixo a porta de ferro entreaberta enquanto arrumo o balcão, limpo as mesas e frito os salgados… pois o tio estava sentado aí mesmo, Sabirico, tomando uma dose de cachaça…
— Você viu foi coisa, garoto. Morreu, morreu: não volta mais. – resmungou o outro, tomando um gole da cerveja.
— "Vi coisa", porra nenhuma. Não estou falando? Era cedo, nem tinha bebido nada. Eu vi ele pelo canto do olho. Senti um arrepio e olhei direto, a imagem foi se desfazendo aos poucos, como fumaça. Juro pra vocês. Por isso a vela tá acesa ali em cima… – concluía o sobrinho do Balboa, benzendo-se três vezes. Sorri com a cena.
— Como é que é? – perguntei, apoiando o braço no balcão.
— O Doutor dizendo aí que viu o fantasma do Balboa... – tirou sarro Sabirico. "Cerveja?", perguntou o rapaz, no interlúdio, e eu neguei com a cabeça. Dona Maria me advertiu sobre álcool e direção esses dias e vamos combinar, ela está mais do que certa, não é? "Uma coca KS, por favor!", respondi pouco antes de Sabirico continuar. – E o copo de cachaça?
— Como assim? Que copo de cachaça? – indagou o Doutor, enquanto me servia a coquinha na garrafa de vidro, junto com um copo americano.
— Ora, aquele que o teu tio estava bebendo! – esclareceu rapidamente Sabirico, dando mais um gole na cerveja e preenchendo o copo, novamente, evitando o colarinho.
— O que tem ele? – questionou, impaciente, o jovem taberneiro, jogando um pano de prato sobre o ombro esquerdo e apoiando as mãos no balcão.
— Ele também desapareceu? – continuava a perguntar, o ébrio interlocutor, enquanto todos nós acompanhávamos em silêncio o debate. E eu torcia para não haver alguma cadeirada entre eles, ou algo parecido. Nunca se sabe
— Claro que desapareceu… – respondeu o rapaz, meio hesitante, com a voz mostrando a fragilidade de quem percebe um xeque.
— Tá vendo aí? Mais um motivo para eu não acreditar. Você estava sugestionado, só isso. – disse o homem, virando meio copo de cerveja de uma vez. Decidi intervir.
— E porque você não acredita? – perguntei, curioso, depois de tomar um gole da coca, lentamente. A coca-cola é aquela bebida de estimação, que a gente até sabe que o consumo pode aumentar a pressão arterial, causar problemas cardíacos, diabetes e obesidade, mas ingressamos de moto-próprio numa suspensão da realidade a fim de usufruir de seus prazeres.
— As pessoas têm espírito e, segundo a cultura popular, podem se manifestar como fantasmas após a morte. Mas sejamos honestos: copos não têm espírito e definitivamente não podem se transformar em fantasmas, não acham? Imaginem só, com a quantidade de copos que o Doutor quebra aqui, seria necessário chamar um padre para benzer o bar e enviar os pobres dos copinhos novamente para o além! – explicou ele, soltando uma gargalhada e eu calei. Astuto, muito astuto. Seu raciocínio era claro e perspicaz, como há muito eu não via por aí. Agora faltavam vinte minutos.
— E eu? – disse Meio Quilo, um tanto encabulado, a voz baixa e trêmula, atraindo a atenção de todos. – Naquela época, eu morava em Barra Alegre. Alguns anos atrás, um colega nosso, bêbado, quebrou o pescoço ao cair de um cavalo. Morreu na hora, coitado. Aí começou a circular a história de que toda noite ele aparecia à beira do barranco onde havia morrido e todo mundo passou a evitar aquele caminho à noite, pra não cruzar com a alma do infeliz.
— E o cavalo? – perguntou Sabirico apenas para provocar.
— Cala a boca, não tinha cavalo nenhum! – respondeu Meio Quilo, num tom divertido e prosseguiu. – Pois aí teve um dia em que eu esqueci completamente da história, e o caminho era justamente o que levava pra minha casa. Quando dei por mim, eu já estava lá. Puta que pariu, então era verdade! Eu podia ver, lá na frente, o vulto branco do Rubens encostado no barranco, as pernas cruzadas e o braço erguido levando um cigarro à boca... Meu Deus do Céu! Senti meu coração quase saindo pela boca. Apertei o passou e cruzei com ele, tentando não olhar, mas era quase impossível. Foi aí que...
— Puta que pariu! – exclamei de repente ao sentir a mão gelada no meu pescoço. Era o Doutor que estava desde o início da história com a mão no gelo pra poder me pregar uma peça. – Doutor, seu filho da puta! – esbravejei, a expressão de medo se transformando em risadas e logo veio a gargalhada dos colegas. Bebi o restante da coca e completei o copo.
— Ó o fantasma! – berrou Sabirico com sua risada rouca e debochada. Mordeu um naco de linguiça frita que repousava até então num prato besuntado de óleo e chupou os dedos sorrindo.
— Agora você termina essa história, ô, Meio Quilo! – insisti, afastando-me do balcão para evitar outra pegadinha. Bebi o refrigerante do copo quase que de uma vez só e pensei em consultar o relógio, mas esqueci completamente.
— Pois não era fantasma, porra nenhuma. O vulto branco no barranco era o reflexo de um poste em um morro do outro lado, que vinha atravessando as folhagens das árvores até formar um desenho exatamente ali. À distância, parecia realmente uma pessoa encostada com o ombro na ribanceira, a cabeça levemente inclinada, as pernas cruzadas, parecia até que fumava um cigarro. E como todo mundo ficou impressionado com a morte do Rubens, era exatamente o que a gente via ali…
— Puta que pariu! – gritei ao reparar no relógio de parede e comparar a marcação com o de pulso. Paguei o balconista apressadamente e saí aos atropelos, abandonando a garrafinha KS ainda com um terço de bebida.
Vê bem, era disso que eu estava falando lá em cima, antes de ficar atrasado. Todos temos animais, costumes, ideias, objetos e até pessoas de nosso apreço, claro e evidente, e a eles nos apegamos. Há, por aí, inclusive, manias e até fantasmas de estimação, dá para acreditar? Não tem problema, não é mesmo? Cada um se assombra com o que mais lhe apetecer.
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