O lado avesso do espelho
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"A culpa é como uma sombra, segue-nos por toda parte." (Provérbio chinês)
Há mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia, meu caro. Aconteceu há uns dois meses, eu acho. Talvez mais. Sinceramente, perdi a noção do tempo e isso, de certa forma, é um alívio; o tempo oprime os homens desde que o céu passou a cobrir nossas cabeças. Então, para mim, tanto faz.
A sala da minha casa resume-se a um ventilador, um colchonete e uma TV; os demais itens foram sendo vendidos um a um, quando meu trabalho na firma deixou de ser relevante. Corte de gastos, nova política de custos da empresa, etc., etc.. Comecei a passar meus dias confinado no pequeno conjugado, saindo eventualmente para comprar um item ou outro para as refeições. Acho que isso mexe um pouco com a cabeça da gente, não é? Deve mexer.
Então, aconteceu, há uns três meses... talvez menos. Porra! Não tenho certeza, já disse! Era por volta das oito da noite, bem na hora daquele noticiário global. Eu soprava a fumaça do cigarro quando o âncora cumprimentou a audiência.
— Boa noite.
— Boa noite! – correspondi, recostado na parede, iluminado apenas pela brasa do fumo e a tela da TV.
— O desemprego no trimestre é o menor desde 2015...
— Porra nenhuma! Se diminuiu, por que eu ainda estou desempregado, hein? Aí o governo vai dizer que, na verdade, a culpa é minha? Eu é que não procuro emprego? Eu é que não me qualifiquei? – esbravejei e voilà! A mágica se fez.
— Por favor, acalme-se... – orientou o jornalista após um breve momento de silêncio. Não acreditei.
— Como é que é?
— Fique calmo. Não é culpa sua.
— Não é mesmo.
— Claro que não. Apenas não chegou o seu momento.
— Foi exatamente isso o que eu disse para ela!
— Boa noite. – concluiu o apresentador e logo os créditos subiram na tela, junto com o tema do programa.
Eu não podia acreditar, mas assim foi. Passei a assistir ao jornal diariamente; bastava eu responder ao cumprimento do jornalista e como por encanto, a fina camada da quarta parede se esvanecia. Conversávamos e ele me aconselhava, parecendo saber exatamente o que eu estava pensando. Como se... como se estivesse dentro da minha cabeça.
— "Boa noite" é o caralho! Muito mole para você dar boa noite aí nesse estúdio, seu puto; bem empregado, dinheiro no bolso, mulherzinha te aguardando em casa... – retorqui, certa vez, enfastiado de mim mesmo.
— Opa, opa! Calma aí, bacana...
— Não consegui um emprego ainda. – respondi, cabisbaixo. Pus o cigarro na boca e tateei o chão à procura do isqueiro.
— Dê tempo ao tempo. Você vai conseguir. – orientou o jornalista, apoiando as mãos na bancada e girando o corpo para outra câmera.
— Sabe, eu os encontrei hoje, caminhando na rua.
— Eles, quem? – questionou, franzindo o olhar somente para criar tensão.
— Minha ex-namorada e os pais dela, ué. – respondi, com a voz embargada pelo cigarro preso aos lábios.
— Você sabe que eles te detestam, não é? – lembrou ele, no momento em que eu encontrava o isqueiro. Acionei o conjunto, mas só consegui acender o fumo na terceira tentativa; o gás já estava no final e quase não produzia chama.
— Eu sei... – murmurei, com o olhar perdido, tomado de uma raiva contida e quase claustrofóbica.
— Você precisa fazer algo... – imprecou ele. E naquele momento, alguma coisa ruim começou a crescer dentro de mim, como uma erva daninha que se espalha e não se pode controlar.
— O que acha disso? – perguntou o policial, do lado avesso do espelho da sala de interrogatório.
— Pai, mãe e filha envenenados. Homicídios triplamente qualificados: premeditado, por motivo torpe e sem chance de defesa para as vítimas. Vai puxar uns bons anos na prisão. – respondeu o outro, com desdém, encarando as pontas dos pés. Chutou um bolo de poeira para a frente, mas sua leveza o impediu de ir mais longe.
— Você só está esquecendo que ele é réu primário e já recebe uma atenuação por isso; além do mais, se tiver bom comportamento, o advogado vai pedir redução de pena. Sai da cadeia em menos de dez anos. – observou o policial, virando o pescoço na direção do superior e voltando a encarar o vidro.
— Oh, é claro. A defesa vai alegar insanidade mental, isso é óbvio. Com essa conversinha, esse puto conseguirá um laudo médico com facilidade e é bem provável que troque os anos de cadeia por uma internação em uma clínica psiquiátrica.
— Vá lá. Culpado ou não, talvez ele seja meio louco mesmo. Quero dizer: fazer uma coisa dessas... é preciso muita frieza. – comentou o mais jovem, cruzando os braços, resignado.
— Talvez todos nós sejamos um tanto loucos, culpados e frios, meu amigo. Perceber isso depende apenas... de que lado do espelho você decide observar seu rosto. – considerou o homem, dando as costas para o vidro e encarando o colega de frente. Rompeu a marcha, mas parou a meio caminho, com a mão no ombro do outro. – Decifrar a natureza da alma humana é como cavar um buraco sem fundo, com as próprias mãos. Você vai ferir a si mesmo na tentativa e nunca vai chegar a lugar algum. – concluiu, e seguiu para a porta, saindo, indiferente.
"Há mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia", repetiu o homem na sala de interrogatório, talvez a única verdade que ele disse nesse tempo todo. Ou não. Essas coisas mexem um pouco com a cabeça da gente.
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