Avião faz pouso forçado e intriga populares
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"O absurdo está no encontro do indivíduo com o mundo." (Albert Camus)
O caso se deu na semana passada e pouca gente tomou conhecimento da hipérbole. Era fim de tarde, o céu estava limpo, mas o frio era cáustico e prolongado. Como eu precisava aguardar para buscar meu filho na saída da escola, resolvi entrar na matriz, antes de seguir para meu destino original, e fazer algumas orações rápidas. Nunca é demais.
Benzi-me na entrada, suspendendo o olhar para o Cristo de braços abertos sobre a grande porta. Escolhi a esquerda e ajoelhei-me no último banco. A igreja estava quase deserta, umas poucas pessoas espalhadas aqui e ali, rezando em silêncio sob uma brisa fria que sussurrava pelo ambiente. Ainda que não estivessem calados, a acústica do lugar permitia que suas preces fossem feitas de maneira extremamente discreta e distante do barulho do centro da cidade, onde um tumulto de carros, motos e ônibus ecoava feito uma matilha que late atrás de cavalos invisíveis.
Fiz novamente o sinal da cruz antes de me levantar e, mais uma vez, ao deixar a igreja que leva o nome de um monarca português. Não havia ciganas na porta, nem pedintes, nem ambulantes ou artesãos, algo que soava como um insulto a anos de história e uma cultura já profundamente enraizada nas brenhas da nossa tão querida e amada Colline Brûlée, algo que sempre me causa uma estranheza sem rival. Segui, contudo, impressionado ou não.
Virei em direção à Alberto Braune e, enquanto caminhava, escutei um som que vinha do alto, aumentando vigorosamente a cada segundo; era uma espécie de ronco abafado que culminava num zunido ensurdecedor. Todos olhamos para o céu; a cena inacreditável planava em alta velocidade sobre nossas cabeças. Um avião estava caindo bem no centro de Nova Friburgo.
Acelerei o passo enquanto outros corriam na direção do local da queda, nada menos que a principal avenida da cidade. Puta que pariu! Se me contassem eu não acreditaria. Era um Caudron Simoun, um monomotor francês com capacidade para quatro pessoas, da década de 1930, usado como avião de correio pela companhia Air Bleu, e como aeronave de ligação pelo Armée de l'Air durante a Segunda Guerra Mundial. Não é surpresa que tivesse caído.
A aeronave derrubou com a asa direita a parte alta de algumas árvores, o obelisco da praça e, de quebra, Dr. Amâncio, com pedestal e tudo, arrastando em seguida o peito de aço que faiscava nas lajotas de cimento, até parar pouco depois da Augusto Cardoso. Do motor, subia uma coluna de fumaça escura que pouco a pouco se extinguia à medida em que a hélice parava; as pessoas levantavam seus celulares para registrar o momento e, em questão de minutos, o acontecimento já estava nas redes sociais, e em todos os jornais e portais de notícias da cidade e da capital, em letras garrafais: "Avião faz pouso forçado e intriga populares". Mal podíamos acreditar! A multidão se aglomerava, curiosa e às cotoveladas, e esquecemos todos do frio, das eleições e até de buscar o filho na escola.
O deslocamento de ar causado pelo avião espatifou algumas janelas de apartamentos, mas não foi isso o mais impressionante ou estarrecedor; tampouco a fuselagem semelhante a retalhos de metal rebitados e cobertos de uma fina poeira amarela chamou tanto minha atenção. De repente, o piloto abriu o cockpit, vestindo uma jaqueta cáqui repleta de bolsos, um lenço grafite amarrado ao redor do pescoço e um chapéu de couro marrom; também usava óculos com armações redondas e alças de couro. Após acenar para a multidão, intacto e sem nenhum ferimento, o piloto sorriu e proclamou: "Silvio Santos vem aí!". Como é que é, ô, rapá?
A verdade é que as reminiscências do dia servem de matéria aos sonhos da noite, e toda vez que cai um avião, seja em Vinhedo, nas Filipinas, Chikangawa ou Badaquistão, eu penso "cara, se caiu lá, pode cair aqui também" (como já caiu. Duas, duas vezes, terráqueo!). A notícia foi tão prostituída e banalizada que o tupiniquim aprendeu de cor e salteado, em apenas uma semana, o número total de vítimas, quantos passageiros deveriam ter embarcado e não embarcaram, que gelo nas asas derruba aviões, além do Índice de Desenvolvimento Humano e até a densidade demográfica daquela cidade do interior paulista. O evento só perdeu o lugar mais alto do pódio para a morte do homem do baú, figura que dispensa comentários.
Um avião caindo em plena Alberto Braune... Que Deus nos livre e guarde. O caso se deu na semana passada e pouca gente tomou conhecimento porque... na ocasião eu fiquei com vergonha de contar para os colegas essa experiência onírica de contornos esmaecidos e luz matizada, tão estranha e absurda que chega a parecer infantil. Somente Dona Maria e os garotos ficaram sabendo. Ora, um avião caindo em plena Alberto Braune... "Deus nos livre e guarde!", penso, benzendo-me três vezes. Nunca é demais.
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