Rápido como quem rouba
“O urgente geralmente atenta contra o necessário.” (Mao Tse-Tung)
Pudim de leite. Anotem aí, terráqueos. Pudim de leite, sem hífen. Trata-se da sobremesa daquele dia. Para quê, minha senhora? Ora, apenas deixe anotado aí em algum lugar, num rascunho, na palma da mão, sei lá; e dispensado o acessório, sigamos para o essencial.
O expediente encerrou-se na firma às dezesseis horas em ponto, nem mais, nem menos. Eu estava feliz da vida que não possuía mais qualquer compromisso naquele dia, ia direto para casa, tomaria um banho quente, calçaria sandálias, faria um lanche, ficaria o restante da tarde e a noite com Dona Maria e os garotos. Maravilha!
Passei o crachá na máquina para registrar minha saída e segui para o estacionamento. Liguei o carro e deixei o óleo circular por uns cinco minutos (segundo especialistas, rodar com o motor frio em curtas distâncias acarreta aumento no consumo de combustível e diminuição da vida útil do óleo lubrificante). Arranquei com o carro, acenei para o colega da portaria e quando eu chegava ao final da rampa de saída, senti uma cólica abdominal percorrer o pé da barriga, de um lado a outro. Putzgrila.
Encolhi-me, brevemente, enquanto observava o trânsito folgar, a fim de acessar a via. Não devia ser nada demais, uma cólica, apenas isso. Ingressei na rua e segui acelerando. Primeira, segunda e terceira; rotação de três mil RPM. Quarta. Ô, caceta. Outra cólica, dessa vez, mais forte e demorada. Puta que o pariu. Eu estava suficientemente distante do trabalho para voltar, mas consideravelmente longe de casa. Seguir em frente era o jeito, o único jeito.
Eu acelerava ainda mais o carro (tentando, evidentemente, mantê-lo na velocidade permitida do viaduto), mas já reparou, cara pálida, como sempre em que a gente tem pressa, todos à nossa volta parecem perder o interesse pelo tempo? À nossa volta não, corrijo-me: à nossa frente. Surgem tratores, carros quebrados, sinais fechados e até capivaras atravessando a rua. Ih, rapá... outra cólica! Comecei a suar frio, os intervalos das pontadas na barriga estavam se tornando cada vez mais curtos, inevitáveis, intolerantes.
Chegando no semáforo das flores, no bairro Ypu, o sinal amarelou, mas eu acelerei e passei a tempo. Ufa! Mantive a esquerda, cheio de esperança, mas meu mundo caiu (feito o da Maysa) quando alguns carros se concentraram na próxima saída, para a entrada na Vila Guarani. Não falei, tenso leitor, que tudo acontece quando a gente tem pressa? Terceira, segunda, seta para a direita. Seta para a esquerda novamente, evolução de marchas… puta que o pariu, um ônibus à frente. Permaneci em terceira marcha, a rotação do motor diminuindo, vou precisar reduzir para segunda. Deus do céu, mais cólicas. Encolhi-me, segurando firmemente o volante, os dentes cerrados.
“Vai, ônibus!”, murmurei enfastiado. Converteu à esquerda, graças a Deus, o sinal estava aberto. Segui pelo mesmo caminho, lenta e continuamente, mas eis que o puto sinalizou que faria uma parada. “Bora, minha gente!”. Não perdi mais tempo, olhei se não vinham carros no sentido contrário, dei seta e ultrapassei o coletivo, acelerando com vontade na subida. Calma, Pachecão, estamos chegando.
“Eu devia ter voltado para o trabalho...”, pensei arrependido, quando meu mundo caiu pela segunda vez. Desta feita, lembrei de outra cantora, não mais a Maysa. “Não está sendo fácil…”. Está rindo, cara pálida? Um carro começou a piscar o farol atrás de mim. Era uma viatura policial mandando eu encostar. Puta que o pariu, só me faltava essa.
– Documentos, por favor. – pediu o policial, parado ao lado da minha porta.
– Sim, senhor policial… – disse num tom choroso e sofrido, catando os documentos no plástico da carteira. Não há nada mais moderno, não? Tenta retirar alguma coisa daquele invólucro com pressa, para ver o que acontece. Rasga tudo e não sai nada. Consegui, enfim. Estiquei os documentos na direção do homem, com a mão trêmula, os olhos marejados.
– Está com pressa, hein, irmão? – comentou, numa reprimenda, enquanto observava os papéis em sua mão, movendo o olhar deles para mim, encolhendo as sobrancelhas.
– Sabe o que é, meu amigo… – respondi, balbuciando nervosamente. – Eu estou com uma dor de barriga danada... – concluí, com sinceridade, o olhar tristonho, no exato momento de outra cólica. Ele franziu os lábios e permaneceu em silêncio por alguns segundos, como se absorvesse a informação e a relacionasse com minha expressão corporal.
– “Pera” um pouco aí… – disse ele, e foi até a viatura com meus documentos. Falou alguma coisa com o outro policial no carro (provavelmente seu superior) e retornou logo em seguida. Entregou-me os documentos e me liberou. – Se adianta aí, irmão. Vai, vai! Se adianta! – autorizou ele, circunspecto e sisudo.
– Ah, obrigado, seu guarda. Mas de repente… perdi a pressa. – respondi encabulado, ruborizando, enquanto pegava meus documentos.
Dona Maria achou a situação demasiado escatológica para uma crônica, mas os garotos estão rindo de mim até agora. Por isso, achei conveniente mudar a roupa do texto para algo mais formal – e limpo. Primeiramente, terráqueos, não saiam correndo por aí, qualquer que seja o motivo, pois a dor de cabeça pode ser maior que a dor de barriga. Em segundo lugar, o sinal amarelo significa “atenção” e não “vai que ainda dá tempo”. Em terceiro e último lugar… lembram do pudim de leite? Está cheio deles por aí: apetitosos, saborosos e irrecusáveis… mas não se enganem. Nem sempre nos convém.
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