Tirem as crianças da sala
“Sufoca-se o espírito da criança com conhecimentos inúteis.” (Voltaire)
“Tirem as crianças da sala, porque as imagens que veremos a seguir são fortíssimas.” Esse era o tal alerta de gatilho que volta e meia era jogado nos peitos do telespectador, em pleno jornal das oito, programa dominical ou eventual plantão de notícias, quando eu era moleque. A advertência é uma mensagem que se tornou praxe apresentar ao público antes de livros, filmes, ou algum outro tipo de mídia, a fim de avisar sobre um conteúdo potencialmente perturbador. É claro que na época não tinha esse nome, se é que possuía algum – feito aquela parte de trás do joelho.
Imagina se o apresentador do programa não avisasse? Um monte de criança acordando de madrugada, indo pedir arreglo pro papai e pra mamãe porque “sonhou ruim”? Se existissem redes sociais, no dia seguinte haveria um bombardeio de postagens malhando o telejornal por ter cometido essa gafe e impressionando a meninada. Opa, mas peraí. Por que as crianças assistiam jornal televisivo?
É aí que está o X da questão, caro terráqueo. Vê bem. Com o avanço do combate à pandemia – e a proximidade do réveillon e carnaval, é claro – nada mais natural que chegássemos ao momento em que se flexibilizassem as medidas de resguardo, seja o distanciamento social (esse aí o pessoal largou de mão por conta própria) ou uso de máscaras em locais públicos. E nós temos mais é que comemorar pelas coisas estarem tomando um rumo melhor, não acha, nobilíssimo leitor? Acontece que tem sempre o lado A e o lado B, gente que celebra e gente que impreca. Já ouvi uma ou outra unidade de tupiniquim falando que não é o momento adequado, pois as crianças não estão vacinadas. O nome disso é preocupação? Ah, deve ter outro nome – se é que tem algum.
Cara pálida, se o senhor está desconfortável com a flexibilização por causa das crianças, basta não aglomerar. Não assista à queima de fogos, não pule carnaval. Só isso. Praguejar contra o governo por conta da medida, não resolve. A responsabilidade pelas crianças não é do governo, é sua. Não culpe o âncora do jornal porque não deu alerta de gatilho, não culpe o autor da novela porque colocou um monte de sacanagem no enredo. Tire as crianças da sala. Por acaso, telejornal ou novela é programa para criança? Então não me venha com chorumelas.
A gente precisa saber responsabilizar a quem de fato tem responsabilidade, mesmo quando este alguém seja nós mesmos. Mas o fato é que muito mais fácil assacar a outros nossas obrigações, principalmente quando elas implicam em resultados negativos. Tudo tem nome. E isto se chama ardil – coisa com a qual viemos instalados de fábrica.
“Pensem nas criancinhas”, disse Pelé. Terráqueo, como é que a gente vai cobrar isso do governo ou quem quer que seja, se não fizermos isso dentro de nossas casas? A TV, o tablet, os celulares, a internet, todos eles se tornaram babás de nossos filhos, nós demos a eles este poder. Ora, é muito conveniente permitir que pajeiem nossos pequenos enquanto nos dedicamos a nossos “imprescindíveis afazeres”. Aceite ou não, o nome disso é negligência. Aliás, a parte de trás do joelho se chama fossa poplítea. Tudo tem nome.
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