De volta ao Planeta dos Macacos
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"Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele." (Fiódor Dostoiévski)
É disso que estou falando, meu senhor. Sem dúvida, causa estranheza iniciar a leitura de um texto dessa forma, mas faz todo o sentido nesta crônica, pois é praticamente a continuação direta da narrativa anterior, tal como na sequência de "Planeta dos Macacos", em que o astronauta Brent parte em uma missão de resgate ao amigo Taylor, preso em um futuro distópico. O significado de distopia já precisa ser repensado.
Os colegas da repartição me apelidaram de "profeta do caos", "arauto da agonia", "papagaio filosófico", tamanha a minha obsessão pelo tema. Mas o leitor há de concordar que a questão é inesgotável e relevante. Defendo-me: não é culpa minha, mas sim do tupiniquim, que parece incapaz de lidar adequadamente com esse tipo de situação. Veja bem.
Semana passada, respondi "débito" para o atendente do mercado, pasme, umas três vezes, até que ele voltasse à nossa realidade. "Ahn...", balbuciou ele, encarando-me lentamente, e foi nesse instante que percebi o fone bluetooth no ouvido esquerdo. Enquanto registrava os produtos no caixa, ele se distraía com algum podcast (des)interessante. Ora, veja: onde quer que eu vá, é possível contar nos dedos as pessoas que não estão utilizando um fone de ouvido, um celular ou algo do tipo; é como se estivéssemos todos subjugados por um simbionte eletrônico, reduzidos a zumbis catatônicos, alheios ao mundo exterior.
Numa outra ocasião, quando retornava para casa num coletivo apinhado de gente, ouvi (sem querer) uma conversa entre duas senhoras. Uma delas, estupefata, relatava que um "conhecido-do-vizinho-de-uma-conhecida" havia batido as botas por ter sido inadvertidamente "despertado" de um transe enquanto estava imerso nos domínios do aparelho celular, contrariando aquela clássica recomendação de não se acordar uma pessoa sonâmbula. "Será?", pensei, franzindo o sobrolho.
Aquela narrativa inusitada tinha um motivo: no mesmo ônibus, um senhor assistia a um daqueles vídeos curtos; nele, um sujeito (um médico, ou outro profissional de saúde) palestrava sobre um tema qualquer. E eis que o referido senhor, muito simpático, respondia educadamente aos comentários do homem, como se estivessem em uma telechamada. "Está bem, meu filho, vou fazer isso, sim...", "sabe que esses dias eu tive mesmo uma azia?", e assim por diante.
Ora, se nem o adulto possui a maturidade necessária para utilizar um puto de um celular, cara pálida, imagine as crianças e adolescentes. Chegará o dia em que o vício em dispositivos eletrônicos será tratado da mesma forma que o vício em cigarros, com a venda e o consumo proibidos para menores de idade, horários e locais estabelecidos para o uso; quiçá os aparelhos passarão a exibir imagens e mensagens alertando sobre os riscos à saúde de consumir vídeos curtos e navegar nas redes sociais.
Aliás, esse processo já começou. Nas escolas, o uso dos telefones móveis – que de telefones praticamente só mantêm o nome – já foi proibido. Muitos filhos estão surtando (o que, de certa forma, é compreensível) e pais reclamando (sério?) que isso é um exagero, que deveria haver uma flexibilização. Ora, francamente. A maioria de nós passou a infância e a adolescência sem nada disso. Como agora vêm me dizer que o acesso a essas tecnologias é indispensável? Não tem cabimento.
É disso que estou falando, meu senhor. O assunto é inesgotável e pertinente, mas ficar batendo na mesma tecla me torna ainda mais chato do que já sou. Corro o risco de receber cartas e emails na redação do portal com reclamações e sugestões de epítetos, com calão consideravelmente mais baixo do que os do segundo parágrafo, inclusive. E convenhamos, não adianta nenhum astronauta partir em uma missão de resgate a alguém preso na realidade alternativa dos dispositivos eletrônicos, o camarada deve escapar por si mesmo. E a culpa disso não é minha, meu senhor, nem do celular. A culpa é do tupiniquim.
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