(Boas e) más notícias
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"Todo mundo tem dentro de si um fragmento de boas notícias." (Anne Frank)
Então, tenho boas e más notícias, terráqueo. A má notícia é que não estou certo se a próxima pode ser considerada, de fato, uma "boa" notícia, no sentido mais estrito da palavra. E parece que não há absolutamente nada que possamos fazer a respeito.
Pois bem, sigamos. Os livros de Ciência terão, inevitavelmente, que ser reescritos (os de História também, mas isso é assunto para outra crônica). Ao que tudo indica, o avanço imperialista da telefonia móvel e a consequente ubiquidade dos aparelhos celulares parecem ter desbloqueado sextos, sétimos, oitavos e sabe-se lá quantos sentidos até nos seres humanos mais obtusos que esse planeta já conheceu.
Não sei se me compreende, meu senhor, mas faço questão de me explicar. Algumas unidades de homo sapiens parecem ter adquirido a notável habilidade de caminhar e digitar no celular, sem a necessidade de visualizarem o caminho. Atravessam ruas, saltam buracos, desviam de ambulantes, ciganas… tudo isso com os olhos fixos no aparelho, chegando ao destino em total segurança, incólumes, sãos e salvos. Dá para acreditar?
Isso tinha que ser matéria de documentário e o escambau. É importante entender que a habilidade motora de locomoção não se restringe apenas ao ato de caminhar ou correr: de forma conceitual, a habilidade motora é a capacidade do ser humano de se deslocar no espaço, seja horizontal ou verticalmente, utilizando todas as formas possíveis de movimento corporal. Mas realizar isso sem olhar, meu camarada, para mim, é o ápice do desenvolvimento da humanidade, algo sem precedentes.
Além disso, existe uma espécie de evolução da esconjurada habilidade, que consiste na capacidade de se guiar um carro, pilotar uma moto ou andar de bicicleta, riscando o dedo no smartphone, enviando áudios, curtindo publicações nas redes sociais preferidas, e por aí vai. Entenda minha surpresa, cara pálida: com quarenta e tantos anos, agora é que estou aprendendo a caminhar, tomar sorvete e respirar ao mesmo tempo. Quanto mais digitar no assistente pessoal e caminhar por esses rincões, ora bolas!
É espantoso, sem dúvida. Uma variação do mesmo fenômeno é aquele tupiniquim que conversa com a esposa, os filhos, os colegas de trabalho, os atendentes de mercado… tudo isso utilizando o famigerado aparelho celular, assistindo vídeos curtos sem sentido, conferindo as últimas notícias e mais uma infinidade de distrações, respondendo com eventuais "aham", "verdade", "é complicado", mimetizando as sugestões de textos prontos do aplicativo esmeralda.
Não é espantoso, é admirável. Não, espera. É, sim, espantoso, porque tudo parece ter ocorrido da noite para o dia, sem gradiente, num estalar de dedos e não há bala de prata que possa eliminar o monstro que assume nossos lugares em nossas casas. Os livros de Ciência precisarão ser reescritos; os de História, Português, Matemática, Filosofia, Sociologia, todos esses, igualmente. Não tenho, contudo, certeza se isso é lá uma "boa" notícia.
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