Um enigma de outro mundo
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"Há enganos tão bem elaborados que seria estupidez não ser enganado por eles." (Charles Caleb Colton)
Fora um dia tipicamente friburguense. O dia amanheceu com um sol tímido que afastava a friagem da madrugada, apenas vencida lá pelas nove da manhã. A partir daí, o calor aumentava de tal maneira que obrigava a muitos a se abanarem, ainda que debaixo de sombras, os dedos em riste limpando testas molhadas de suor. Conforme a tarde avançava, as nuvens se acumularam no céu e não demorou muito para que caísse um belo de um pé d'água. E depois frio, frio...
Pois bem. Naquele fatídico dia, eu estava em um barzinho, com uns amigos do trabalho, logo após a chuva. "Analista sênior", dá para imaginar? E isso com apenas trinta e quatro anos de idade, sete de firma. Eu não esperava, não mesmo (embora nutrisse utópica esperança, um desejo quase pueril). Após as ovações e cumprimentos (alguns com finos vernizes de sinceridade, que me permitiam ver ao fundo uma ponta de inveja), convidei os colegas para um chopp depois do expediente. Evoé!
O barzinho da Monte Líbano era estiloso, com paredes pintadas de um verde oliva, detalhes e móveis em madeira, cardápio bem escolhido e preparado, cerveja geladíssima. Ficamos bebendo e jogando conversa fora até depois do horário de fechamento do bar, com as portas já arriadas. Lá pelas tantas, despedimo-nos efusivamente (levamos um esbregue de uma senhora no segundo andar de um prédio vizinho) e fomos cada um para seu lado, com bocas amargas e estômagos estufados, soluços e arrotos ocasionais.
E lá estava eu, no início da madrugada, caminhando pelo antigo caminho do trem, em frente à antiga fábrica Ypu. Ypu, Ypu... bem apropriado dar-se o nome de "olho d'água" a uma fábrica instalada em uma cidade que brota água em tudo que é lugar.
O chão estava molhado, mas o céu... ah, o céu estava estrelado, de lua belíssima minguante. Um dia tipicamente friburguense, eu disse. Analista sênior! Puta que pariu! Ela ia adorar saber disso! Mas... espere aí. Onde está minha pasta? Ah, merda! Deve estar no banco de trás do carro. Carro? Onde foi mesmo que eu estacionei? "As chaves...", pensei batendo as mãos nos bolsos do paletó, enquanto caminhava. Então foi isso: esqueci completamente onde estacionei o carro e decidi ir a pé para casa....
Deixe estar.
A noite era tão linda e eu estava tão feliz que isso não importava nem um pouco. No dia seguinte era só eu voltar e buscar o carro. Simples assim.
Eu caminhava e cantarolava uma música qualquer, enquanto os sapos coaxavam em harmonia com grilos e uma brisa leve e úmida que farfalhava as folhas das árvores. As margens eram formadas por alguns terrenos baldios à minha direita e, à minha esquerda, culminavam no rio que serpenteava barrento, descendo como poesia até o centro do burgo. Acima de mim, a lua e as estrelas!
Analista sênior! Deus, foi tudo muito de repente. Eu dava passos vacilantes olhando para aquele céu maravilhoso, quando percebi um zunido que aumentava de tom quanto mais eu avançasse na estrada. Uma luz forte surgiu da mesma direção do ruído e tomou conta de mim até que eu não pudesse enxergar mais nada. Então, subitamente meu corpo ficou leve e perdi a consciência. Não sei quanto tempo fiquei nesse estado catatônico, mas quando acordei, estava deitado numa espécie de maca; em torno de mim, duas ou três criaturas estranhas, com roupas bizarras, manuseando instrumentos ainda mais esquisitos. O ambiente era branquíssimo e bastante iluminado, e eu sentia um frio assustador.
Aquelas criaturas conversavam entre si e entreolharam-se, como num acordo tácito sobre o que quer que realizariam naquele momento. Suas vozes eram metálicas e eu não conseguia compreender nada do que diziam. Para mim, eram como um enigma de outro mundo e temi que fosse o último que tentaria desvendar em minha vida. Meu coração batia aceleradamente e meu corpo fremia em desespero; tentei levantar, mas a vista turvou e apaguei novamente.
Despertei numa cama, uma agulha espetava o dorso da minha mão direita e um delgado duto de borracha a conectava a uma bolsa de soro.
– Onde estou? – perguntei, confuso. Sentia-me lento e dolorido, a cabeça parecia que ia explodir.
– Shhhh.... fica quietinho e vê se descansa um pouco. – disse ela, num tom carinhoso, passando a mão em meus cabelos. Oh! Ela estava ali!
– Ah, você não vai acreditar! Fui promovido... Analista Sênior! – anunciei, emocionado. – A pasta... acho que ficou dentro do carro. Caralho, o carro! – reclamei, tentando me reerguer, mas ela me impediu.
– Não, não, não... descansa um pouquinho, o carro está seguro, estacionado na Monte Líbano. Puxa vida, por que você não pediu pra alguém te levar em casa?
– Em casa? Eu não entendo... onde eu estou? Eu preciso sair daqui, hoje é meu primeiro dia como Analista Sênior...
– Fica calmo, por favor... – interrompeu-me ela, com o sorriso mais lindo que eu já vi na vida. – Você está num hospital. – completou, com uma fisionomia preocupada, os olhos marejados de lágrimas.
– Hospital? Então, eu não fui... então, quer dizer que eu não fui abduzido?– perguntei desconcertado, sentindo ruborizar. Corri o olhar sobre meu corpo coberto pelo lençol azul claro, somente agora percebido.
– Abduzido? Não, claro, que não! Você foi atropelado enquanto voltava a pé pra casa. O motorista fugiu sem prestar socorro, mas algum anjo ligou para os Bombeiros e você foi resgatado rapidamente. Quebrou algumas costelas, uns ossos da mão e braço esquerdo, rompeu o baço... mas os médicos disseram que vai ficar bem. No máximo, vai ganhar algumas cicatrizes. Mas até que eu acho isso um pouco sexy...
– Sério, isso? Tem certeza que não fui abduzido? Eles eram tão reais...– perguntei, tentando imaginar onde haviam implantado o chip. Ah... a mão supostamente fraturada, é claro.
– Não, meu amor! Você não foi abduzido... – confirmou ela, com bom humor. – Agora, descansa um pouco, tá? – concluiu, e me deu um beijo na testa, feito naquela música do Léo Jaime. Franzi as sobrancelhas e suspirei, desviando o olhar. Mas que porra! "Eles eram tão reais...", pensei, desconcertado. Sorri e voltei o olhar para ela novamente.
– Sabe... fui promovido: Analista Sênior! – comentei, já sabendo o que esperar.
– Ah, meu bem! Que bom! Parabéns! – disse ela, passando a mão em meus cabelos novamente.
– Eu sempre soube que ia gostar... – disse encarando-a desconfiado.
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